As comemorações na França do bicentenário da morte do escritor francês Marquês de Sade, neste ano, são marcadas pela reabilitação desse polêmico autor do século 18, que foi censurado no país até 1957 por motivo de "ultraje à moralidade pública e à religião".
O marquês Donatien Alphonse François de Sade, nascido em 1740, em Paris, foi preso inúmeras vezes acusado de agressões sexuais e imoralidade e faleceu em dezembro de 1814 em um asilo de loucos, onde passou os últimos 13 anos de sua vida.
Chamado durante muito tempo de "monstro", sua obra era considerada "maldita" e "pornográfica".
Seus textos foram rejeitados em razão do forte erotismo associado a atos de violência e crueldade, com torturas, estupros, assassinatos e incestos.
O nome Sade se tornou famoso em todas as línguas, dando origem à palavra sadismo, que faz referência às cenas de crueldade e de torturas descritas em seus livros.
Os Cento e Vinte Dias de Sodoma é a sua obra mais famosa, escrita na prisão da Bastilha em 1785, pouco antes da Revolução Francesa.
Para impedir que a obra fosse apreendida, Sade recopiou o texto com uma letra minúscula e colou as folhas para formar um fino rolo de papel, que tinha 12 metros de comprimento.
O texto só foi encontrada em 1904 e qualificado pelos opositores como "um longo catálogo de perversões". A obra inspirou o filme "Saló ou os 120 dias de Sodoma", do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini.
Clandestinidade
No século 19, seus textos circulavam clandestinamente, "por baixo dos casacos", diz o historiador Gonzague Saint Bris, autor da biografia Marquês de Sade – O Anjo das Sombras (em tradução livre), publicada recentemente para celebrar o bicentenário da morte de Sade.
"Victor Hugo, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, que se inspirou em Sade para escrever A Menina dos Olhos de Ouro, todos liam Sade", afirma Saint Bris.
Foi somente em meados do século 20, em 1957, que uma editor francês, Jean-Jacques Pauvert, tirou Sade da clandestinidade ao publicar, apesar da censura ainda vigente, suas obras com o nome oficial da editora.
Pauvert foi processado, mas conseguiu obter, em um recurso na Justiça, o direito de publicar as obras do marquês.
A verdadeira consagração de Sade na França só ocorreu quase dois séculos depois de seus escritos, com a publicação, em 1990, de suas obras completas pela prestigiosa Pléiade, a mais renomada coleção de livros da França, da editora Gallimard.
A Pléiade inclui em seu catálogo grandes nomes da literatura mundial, como Marcel Proust, Antoine de Saint-Exupéry, Albert Camus e Leon Tolstoi.
Comemorações
Por ocasião do bicentenário, a Pléiade irá publicar cartas escritas por Sade à sua mulher. Outros livros que falam sobre sua personalidade e sua vida repleta de escândalos também estão sendo lançados, como duas obras do escritor Jacques Ravenne, Cartas de uma vida e As sete vidas do marquês (em tradução literal).
"Eu quis reabilitar Sade. Ele deu liberdade à literatura. Dois séculos após Os 120 dias de Sodoma, ninguém foi tão longe. Estudei biografias, arquivos e coleções privadas. Ele era o sol negro do século das luzes", afirma Ravenne, que também é pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França.
Em novembro, o Museu d'Orsay, em Paris, fará uma exposição em homenagem a Sade, que mostrará sua influência na literatura e no mundo das artes.
Outros eventos estão previstos no país, como um festival no castelo de Lacoste, no sul da França, que pertenceu ao marquês e foi adquirido pelo costureiro Pierre Cardin.
Hoje só existem as ruínas do castelo, situado em uma antiga pedreira.
Bastilha
"Sade estava à frente do seu tempo", diz o historiador Saint Bris. Suas obras eram repletas de perversidade e violência, mas Sade, na avaliação do autor, "era um humanista".
"Sade defendia a abolição da pena de morte", diz Saint Bris.
Foi justamente por gritar através das grades de sua cela na Bastilha às pessoas que passavam na rua que prisioneiros estavam sendo degolados no local que Sade foi transferido, às pressas, para um asilo de doentes mentais pela primeira vez.
Ele foi solto em 1790, após a Revolução, mas foi novamente internado em um hospício sem julgamento, em 1801, na época de Napoleão I, e nunca mais foi liberado.
O marquês foi preso sob todos os regimes políticos da época em que viveu (monarquia, república, consulado – na época de Napoleão Bonaparte – e império). No total, ele ficou detido 27 de seus 74 anos.