Nascido em Jequié, criado em Itabuna, Carlos Betão constrói uma trajetória sólida no teatro baiano, com interpretações viscerais e que reafirmam a opção por uma dramaturgia que aposta na força da palavra
Há algumas semanas, um garoto aspirante a ator se aproximou de Carlos Betão, 55, para perguntar como se chega à TV. A resposta foi um dar de ombros, seguida de uma verdade do ofício: "Se a motivação é ficar famoso, não seja ator". Uma verdade, sobretudo, para Betão. Nascido em Jequié, criado em Itabuna, ele buscou a atuação para conquistar um sobrenome em terra de coronel. Trinta anos depois, de maneira sóbria e reservada, pode-se dizer que integra a aristocracia do ofício.
"Meu nome é Carlos Alberto Silva Santos. Não tenho sobrenome importante e, de onde vim, sobrenome é travessia", disse ele, pouco antes da última seção da primeira temporada de Sade, seu mais recente espetáculo, onde interpreta o aristocrata francês que alcunhou o sadismo. "A dor de ser mais um era grande. O teatro foi o meu caminho: o lugar onde consigo dizer o que penso e faço o outro pensar".
Não é de admirar, dado o motivo condutor da carreira, que as peças encenadas por Betão sejam justamente aquelas de texto denso. A história de um homem que recusa ser a sua própria revolução (Baal, de Brecht), a epopeia de um outro, decidido a viver um exílio voluntário, desgarrado da sociedade (O sonho, de Strindberg); o príncipe que tenta vingar a morte do pai (Hamlet, Shakespeare); o sargento que encarna o dilema entre o dever e a adaptação às circunstâncias (Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro).
A aristocracia, no caso de Betão, é se fazer relevante. "Acredito que o teatro tem a função de dar um beliscão, de balançar a roseira. E, hoje, se belisca pouco. Parece que o teatro se esqueceu da eloquência, do poder da palavra". Não por acaso, ele integra a companhia de teatro NU, fundada pelo dramaturgo Gil Vicente Tavares e dedicada a montagens que costumam tirar a plateia de uma certa passividade contemplativa, a exemplo das peças Os javalis (2008) e Sade.
Quando Vicente Tavares, em 2006, decidiu fundar a companhia, o primeiro impulso foi ligar para "um ator que desafia diretores e colegas de cena". "Betão gosta de queda livre de ponta cabeça. Ele coloca uma venda nos olhos e pula. Enquanto se discute uma minúcia do texto, ele levanta e diz 'bora fazer!'".
Luz da ribalta
Para interpretar o Marquês de Sade, Betão recusou um convite da TV Globo para integrar o elenco de uma novela das seis. Para viver o sargento Getúlio, papel que lhe rendeu o Prêmio Braskem de melhor ator, em 2011, recusou o protagonismo de dois filmes. Como o próprio costuma dizer, sua ânsia é pela luz da ribalta.
Betão faz cinema e TV - esteve nas novelas Marcas da Paixão, da Record, e Gabriela, remake da Globo, e seu próximo projeto, já em filmagem, é Abaixo a gravidade, do cineasta Edgard Navarro -, mas a crença de que o teatro é onde mora o ator dita a sua vida com sobrenome.
Betão, o apelido, veio do tempo em que ele foi operador técnico numa rádio em Itabuna. A mãe, Vavá Silva, dizia que aquilo era o melhor dos mundos, um filho trabalhando em rádio era como um filho trabalhando em TV. Mas Carlos Alberto, com 15 anos, já tinha compreendido que a sua busca seria outra. E quando uma trupe de artistas fundou a Sociedade Itabunense de Cultura, com oficinas de artes plásticas e teatro, ele enxergou um ofício. Fez-se Carlos Betão, em terra de Dóreas e Amados.
A reinvenção de si ganhou estofo no início dos anos 1990, já em Salvador, com o ingresso no curso de interpretação da Ufba. A passagem acadêmica foi um incentivo do ator Mário Gusmão (1928-1996), que, lembrou Betão, o aconselhava a "não ser capenga; porque isso de notório saber, ator autodidata, não existe".
A passagem pela academia, para Harildo Déda, que dirigiu Betão em Baal e foi seu professor na Escola de Teatro da Ufba, garantiu ao jovem ator uma "certa ordem". "Não deixou de ser um cavalo selvagem, mas aprendeu a lidar com a disciplina e o método".
Duas décadas depois de deixar Itabuna, ao vestir-se como Sade, Betão se viu conversando novamente com barões do cacau, políticos populistas, um Brasil comandado por coronéis. "Sade é um personagem devasso, amoral. A promiscuidade política que nos cerca cria sempre um clima propício para falar dele".
O primeiro beliscão que Betão lançou do palco, contudo, foi em direção a própria mãe. Na estreia do filho como ator, interpretando o pirata da perna de pau, em Pluft, o fantasminha, Vavá cumprimentou conhecidos e desconhecidos da plateia, avisando que, no palco, estava o filho, já homem de sobrenome distinto.