Sexta à noite, boate Kubalada, Centro. Ela senta de pernas cruzadas, impecável. Sorve coca-cola por um canudo. Não reconheço. À sua direita, Tiago ajoelha aos seus pés, lambe sua bota preta. Pende uma barriga branca, sobra do cós da saia, brilhosa, 10 centímetros, no máximo. Látex preto sobre a face, qual carrasco. Levanta-se. Baba do calor do látex, tem olhar calmo. Passa a mão em seu joelho. - "Tá doendo?", ela pergunta. - "Não, minha dona", e se alinha, em pé, ao lado. Um rastro arrastado de corrente tilintando. Carlos Henrique vem, passos curtos. Veste uma empregada doméstica alta, esguia, erótica. Máscara branca mostrando outro rosto. Ela mesma desenhou o figurino. Cotovelos e tornozelos algemados. Uma coleira no pescoço, qual cachorro.

Prazeres da dor

Tiago, em pé, abre as pernas e segura com as duas mãos a teia de correntes pendurada em uma das paredes da boate Kubalada. É uma das primeiras cenas da noite. Ele é escravo de Amanda, a Rainha Frágil, e prepara-se para uma cena de spanking. Ela bate com um cane em suas nádegas, primeiro sobre a saia. O cane é uma vara de bambu ou rattan, que geralmente tem entre 30 e 60 centímetros de comprimento, conhecido, particularmente, pelas marcas, que se revelam de fato na manhã seguinte. Depois, sobe a saia, arria a sunga, e lapeia direto a pele. Coisa rápida. Rainha Frágil está preocupada com a produção da festa, por isso fará poucas cenas na noite.

 "Explore o mundo da dominação e submissão, prazer e dor na masmorra urbana, onde as correntes libertam e as máscaras expõem", lê-se no topo do convite para a festa Profania, acontecida no dia 7 passado. A proposta: "organizada por um grupo de praticantes fetichistas de Fortaleza, a Profania é uma festa onde fetiches são expostos sem preconceitos, em um ambiente de alegria, fantasia e consensualidade, propício para performances eróticas, em que os participantes trocam experiências entre si, realizam e interagem suas fantasias uns com os outros, e provocam olhares alheios".

 Por trás de tudo isso, algumas letras fundamentais. BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), que agrega uma infinidades de fetiches eróticos, rotulados tradicionalmente como transtornos sexuais. Sua face mais conhecida é o sadomasoquismo, com seus papéis de dominação e submissão. Mas suas possibilidades são incauculáveis e seus praticantes escapam aos estereótipos.

 O BDSM confunde fantasia e realidade. Pode ser uma prática bastante delimitada no tempo e espaço, restrita às cenas, que é como se chamam as relações sexuais sadomasoquistas, que são interpretadas e vividas aos mesmo tempo, sem uma clara diferenciação entre realidade e fantasia; ou mesmo um modelo de vida para seus adeptos, estando presente no cotidiano de alguns.

 Um ou outro, quase todos os praticantes de BDSM em Fortaleza se esgueiram em seus dia-a-dia, escondendo a prática pelo preconceito da sociedade. "Como é que você acha que vão encarar, por exemplo, um médico assumidamente sádico?", pergunta Rainha Frágil, praticante e ativista do BDSM em Fortaleza.

 Assim como a prática, o termo sadomasoquismo parece ter múltiplos entendimentos. Originado da junção de referências à obra dos escritores Marquês de Sade e de Sacher-Masoch, o termo passou por uma conceituação científica pela psiquiatria do século XIX, que classificou como aberração sexual a prática, passou pelas teorizações de Freud, até chegar aos nossos dias, diluído em referências superficiais no dia-a-dia, como a personagem Tiazinha.

 Jorge Leite Júnior, doutorando em antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, acha que, atualmente, há um novo ingrediente nessas disputas discursivas: "Hoje, os praticantes estão tendendo cada vez mais, como todos os discursos relacionados ao sexo, a uma autonomia cada vez maior. O discurso dos adeptos da prática social diverge do discurso científico em alguns pontos, e andam em outros de mãos dadas, felizes e contentes. Mas na grande maioria das vezes vai um pra cada lado", analisa.

 É dizer que cada um tem a liberdade de gozar sua sexualidade da forma que bem entender, desde que se respeite outra três letras que acompanham as BDSM: SSC (São, Seguro e Consentido). "São três fronteiras que ajudariam a definir o que é e o que não é BDSM. Somente as atividades que levam em conta a segurança física e mental, bem como o desejo de participar de todos os envolvidos, podem ser consideradas BDSM", escreve Bruno Zilli, doutorando em Ciências Socias pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em seu artigo publicado neste caderno.

 Algo ainda pouco inteligível e respeitável para a maior parte da sociedade, que desconhece. O Vida & Arte Cultura decidiu sair do mundo dos "baunilhas", termo que os adeptos se referem aos não-praticantes, e enveredar por algumas questões do BDSM. Nas próximas páginas você poderá ler mais sobre o tema e conhecer parte da história de Amanda, Tiago, Carlos Henrique e Luciano.(todos nomes fictícios).

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