maria filomenaMaria Filomena Gregori

RIO — Autora de livros como “Cenas e queixas — Um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista”, a antropóloga Maria Filomena Gregori já vinha analisando, desde os anos 1980, agressões e abusos em relações domésticas. Mas faltava à sua pesquisa uma dimensão que lhe oferecesse um outro lado da violência: as dinâmicas, muitas vezes ambíguas, entre prazer e perigo.

Ao investigar as novas manifestações no erotismo, como a produção, o comércio e o uso de produtos sexuais, ou ainda o interesse contemporâneo por pornografias fora do mainstream e por práticas sadomasoquistas, a professora do departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) viu-se envolvida, a partir dos anos 2000, em uma inortodoxa pesquisa de campo. No recém-lançado “Prazeres perigosos — Erotismo, gênero e limites da sexualidade” (Companhia das Letras), ela detalha suas andanças por espaços do mercado erótico contemporâneo, além de clubes e boates para adeptos de BDSM — sigla para bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo nos Estados Unidos e no Brasil.

— O assunto é bastante relevante para acompanhar não apenas a consolidação dos direitos sexuais defendidos pelos ativismos feminista e LGBTs, mas também como eles afetam e são afetados pelo mercado e pelas pessoas em suas escolhas — defende Filomena, em entrevista por e-mail. — Estava interessada em saber como os direitos vão se difundindo e, sobretudo, vão se materializando nos corpos e nas relações pessoais.

Para a antropóloga, olhar a desigualdade de gêneros pelo viés dos prazeres — e, em particular, das práticas BDSM — permitiu identificar nuances que são geralmente apagadas quando se lida apenas com a agressão e a sua — legítima — denúncia.

— Os prazeres, nessas faces do erotismo, lidam com o risco, com as desigualdades, com as contradições sociais que habitam nossas fantasias, inclusive as sexuais — observa Filomena. — São experiências que tornam visíveis as contradições de poder e lidam com elas, até na tentativa de parodiar, de deslocar os efeitos de desigualdade das normas. Uma sociedade cada vez mais consciente das desigualdades de gênero (e das demais desigualdades sociais a elas inteiramente articuladas, como as de raça, idade, estratificação social, nacionalidade) implica dar visibilidade a assimetrias sociais e de poder e implica ativismos, lutas, dissensos e disputas.

Durante as entrevistas com usuários de brinquedos eróticos, Filomena se surpreendeu com os tênues limites entre as pessoas, seus corpos, seus desejos e os objetos. Aquilo que ela imaginava ser uma relação dual entre o indivíduo — ser ativo — versus o objeto — ser passivo — se mostrou muito mais complexa.

— Os objetos sexuais não podem ser vistos como meros veículos de relações entre pessoas ou ainda de nossa imaginação ou fantasias — diz ela. — As pessoas escolhem, dão nomes, criam afeto, conversam... Elas “vivificam” os objetos, a ponto de poder dizer que mais do que bens, eles são agentes eróticos. Dizer que os objetos têm agência é considerar os efeitos que eles criam no mundo.

Em sua pesquisa, a antropóloga acompanhou de perto a criação de novos nichos de sex shops oferecendo produtos e noções para mulheres de classe média alta e urbana no Brasil. Os materiais refletem toda uma concepção de pornografia não convencional, que surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 1970 por iniciativa de pessoas ligadas ao movimento feminista e dos direitos sexuais. Trata-se, segundo ela, de um mercado “feminizado” — feito por e para mulheres para dar conta do que se imagina serem os desejos femininos, e que chegou ao país não pelo ativismo, mas pelo mercado.

— Há uma mudança significativa no mercado erótico: uma expansão das alternativas, que cria mais possibilidades para o que tomamos como desejos femininos. Mas é importante ter em mente que os desejos femininos não significam apenas desejos de mulheres — explica a pesquisadora. — Noto também que há, sobretudo entre mulheres envolvidas em relações heterossexuais, uma maior responsabilização para manterem seus companheiros sexualmente interessados. No feminismo, costumamos dizer que as mulheres têm dupla jornada de trabalho porque continuam responsáveis pelos afazeres domésticos e têm jornadas de trabalho pago. No caso, uma das consequências dessa “feminização” do mercado erótico é instituir uma espécie de tripla jornada...

“Prazeres perigosos” chega em um momento cada vez mais receptivo ao seu tema de estudo. Há menos de dois anos, a Universidade de Sunderland, no Reino Unido, lançou o primeiro “Porn studies” do mundo, um projeto acadêmico inteiramente dedicado à pornografia. Apesar de sofrer resistência no começo, a iniciativa abriu caminho para novos olhares sobre o gênero. Na época, a sua idealizadora, Clarissa Smith, afirmou que o objetivo era superar o julgamento pré-determinado dos pesquisadores com o pornô, colocando enfim em prática estudos transdisciplinares que dessem conta da complexidade do assunto. Segundo Filomena, o mesmo deveria valer para a indústria do sexo como um todo.

— Ter uma abordagem aberta em relação ao assunto não apenas ajuda a consolidar direitos sexuais, como traz uma série de questões que desafiam paradigmas acadêmicos — diz a antropóloga. — Há hoje, por exemplo, uma série de vertentes do feminismo que lutam para abolir a prostituição. Eu sou crítica a essas vertentes. São posições que não conseguem admitir que se trata de pessoas que lutam pela dignidade e pelo respeito ao direito de decidir. Essas vertentes feministas também são contra a pornografia e o sadomasoquismo. São rígidas e tendem a vitimizar e retirar a agência das pessoas.

“Prazeres perigosos — Erotismo, gênero e limites da sexualidade”

Autor: Maria Filomena Gregori Editora: Companhia das Letras Páginas: 280 Preço: R$69,90

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