Samois logo webFundado em San Francisco em julho de 1978 e desmembrado em maio de 1983, o Samois foi a primeira organização conhecida devotada ao sadomasoquismo (S/M) lesbiano e uma peça chave nas fases iniciais das guerras sexuais feministas. O Samois cresceu da confluência do feminismo, lésbicas e gays, liberdade sexual e os movimentos S/M dos anos 70. “Samois” é um o nome de um lugar retirado do livro “Story Of O” (1965), onde fica a casa da solitária mulher dominadora e o local para as atividades S/M conduzidas inteiramente entre mulheres. Como outras organizações pioneiras do S/M, tal como aTES - The Eulenspiegel Society (New York City, 1971) e a Janus Society (San Francisco, 1974), o Samois escolheu um nome obscuro com objetivo de evitar atenção indesejada fornecendo, contudo, sinais legíveis para entendidos.

Surgimento de grupos S/M lesbianos

O Samois e outros grupos pioneiros lesbianos S/M tentaram criar mundos sociais onde lésbicas pervertidas pudessem encontrar amigas e parceiras e construir um espaço seguro dentro de comunidades lesbianas cada vez mais antagonistas. Antes da formação do Samois, as lésbicas que praticavam S/M o faziam primariamente em pequenas redes confidenciais ou em pares isolados, ou ainda se socializando nas bordas das populações S/M mais institucionalmente estabelecidas: dos heterossexuais e dos homens gays.

A discussão pública do S/M lesbiano se expandiu no meio dos anos 70 quando mulheres S/M se tornaram mais visíveis em suas comunidades e fizeram ouvir sua voz no lesbianismo, no feminismo e na mídia gay. Esta visibilidade amplificada do S/M entre mulheres gays provocou, por sua vez, uma série de condenações sobre as incompatibilidades fundamentais entre o feminismo lesbiano e o S/M. A hostilidade cada vez maior ao S/M forneceu motivação adicional às lésbicas S/M para se mobilizarem em autodefesa.

Ironicamente, as diversas batalhas raivosas sobre o relacionamento do S/M e o feminismo aumentaram a força do processo de formação da nascente comunidade. A cobertura extensiva destes debates na imprensa feminista e lesbiana registrou a presença de ativistas S/M mulheres em diversas cidades, incluindo a Filadélfia, Boston, Iowa City, e Los Angeles. Na medida em que entraram em contato umas com as outras, essas mulheres formaram redes maiores e começaram a reunir recursos organizacionais.

Nacionalmente, a construção dessas redes entre mulheres S/M se intensificou em 1975. Em 1978 uma massa crítica foi atingida na baía de San Francisco e resultou na criação do Samois. A controvérsia entorno do Samois promoveu o aparecimento do perfil público das lésbicas S/M e impulsionou a formação de outros grupos em outras cidades. O LSM foi fundado em New York em 1981, rapidamente seguido pelo Leather and Lace em Los Angeles e Urânia em Boston. Apesar do LSM ser a única sobrevivente dessa primeira onda de grupos S/M lesbianos, grandes e diversificadas comunidades lesbianas S/M têm, desde então, se tornado bem estabelecidas em muitos dos maiores centros urbanos.

Defendendo o S/M

O Samois articulou uma forte defesa do S/M como um erotismo legítimo, mesmo entre feministas. A declaração de propósitos do Samois proclamou:
Nós acreditamos que o S/M deve ser consensual, mútuo e seguro. O S/M pode existir sim como parte de um estilo de vida saudável e positivo... Nós acreditamos que as sadomasoquistas são uma minoria sexual oprimida. Nossa luta merece o reconhecimento e o suporte de outras minorias sexuais e grupos oprimidos. Nós acreditamos que o S/M pode e deve ser consistente com os princípios do feminismo. Como feministas, nós nos opomos a todas as formas de hierarquia sexual baseadas no gênero. Como pervertidas radicais, nós nos opomos a toda hierarquia social baseada na preferência sexual. (Samois, 1979, p.2)

O Samois nunca afirmou que o S/M era particularmente feminista, apenas que não existia nenhuma contradição inerente ou conflito intrínseco entre as políticas feministas e as práticas S/M. Além disso, embora abordasse o discurso feminista prevalecente sobre a sexualidade, o Samois não enquadrou sua crítica em termos puramente feministas, mas foi em direção de uma política proto-queer que continha um senso de opressão sexual mais vasto e mais inclusivo, baseado em desigualdades especificamente sexuais.

O Samois projetou essas idéias através de corajosos eventos públicos e publicações originais. Além de apresentações informativas em livrarias de mulheres e em bares lesbianos locais, o Samois produziu a primeira “Leather Dance” de mulheres (1981), a primeira competição “Miss Leather” (1981) e a primeira “Leather Dance” do orgulho lesbiano. Em 1978, o Samois publicou o primeiro “Código dos Lenços” (Hanky Code) de mulheres, adaptado dos códigos de lenços já em circulação entre homens gays. O Samois publicou, em 1979, o livreto “What Color is Your Handkerchief” e, a marcante antologia “Coming to Power” em 1981.

Muitos jornais feministas e lesbianos publicaram violentas críticas dessas duas publicações do Samois, recusaram-se a publicar comentários de apoio e rejeitaram propagandas pagas, já algumas livrarias feministas simplesmente baniram completamente essas publicações. Mas apesar dessas críticas ferozes, os livros eram descontroladamente populares e suas cópias se esgotaram rapidamente. “What Color is Your Handkerchief” chegou a 5 impressões e “Coming to Power” a 3 edições. As publicações, assim como a visibilidade das discussões apaixonadas que elas provocaram, ajudaram a consolidar a emergente comunidade S/M lesbiana. Além disso, os livros marcaram San Francisco como uma conhecida localização das lésbicas pervertidas, fazendo da cidade um imã para a migração, da mesma forma que, entre os anos de 1950 e 1960, as cálidas novelas pulp escritas por lésbicas, fizeram um imã migratório de Greenwich Village.

As Guerras Feministas do Sexo

A maior notoriedade do Samois veio de seu papel nas guerras sexuais feministas, cujo primeiro confronto ocorreu na Bay Area de San Francisco entre o Samois e o WAVPM (Women against Violence in Pornography and Media) [“Mulheres contra a violência na pornografia e mídia”]. Fundado em 1976, o WAVPM era o primeiro grupo a opor-se a pornografia de acordo com um ponto de vista feminista. Entretanto, muito do que o WAVPM achou realmente desagradável na pornografia era o seu conteúdo sadomasoquista, e seus ataques à pornografia incluíram invariavelmente a denuncia do imaginário e da prática S/M.

Por exemplo, o WAVPM exigiu o “fim de todas as representações de mulheres sendo presas, estupradas, torturadas, mutiladas, abusadas ou degradadas de alguma maneira para a estimulação sexual ou erótica”. (Setembro 1977, p.3). O WAVPM condenou repetidamente toda a representação visual, pornográfica ou não, em que qualquer mulher seja mostrada "presa, amordaçada, apanhando, chicoteada e acorrentada" (Novembro 1977, p. 1). A organização conduziu protestos de rua contra imagens S/M e fizeram manifestações nas portas dos cinemas que exibiam a versão filmada de “Story of O”. Uma vez que o WAVPM tratava toda representação visual S/M como violenta, exigindo a sua eliminação, Samois e WAVPM estavam em rota de colisão. Apesar de WAVPM negar ter uma posição definida em relação ao S/M, membros do Samois rapidamente perceberam que o programa do WAVPM era tanto anti-S/M quanto anti-pornografia e que sua crítica da pornografia envolvia uma série de presunções negativas sobre o S/M. Ao confrontar tais suposições implícitas, o Samois desafiou a credibilidade fundamental da estrutura lógica e também das reivindicações empíricas do caso WAVPM contra a pornografia. O Samois e o WAVPM se engajaram assim em uma série de disputas sobre a pornografia e o S/M que prefiguraram uma década de confrontos no feminismo sobre a prática e a representação sexual.

O WAVPM se recusou a aceitar diversas tentativas do Samois de se empenhar num diálogo e debate respeitoso. As crescentes tensões entre os grupos chegaram ao auge em 1980, quando o WAVPM organizou um fórum público para punir o S/M e especialmente para difama-lo na comunidade lesbiana. O Samois questionou o evento, afirmando em seu panfleto que o WAVPM, mesmo sem ter uma posição "oficial" sobre o S/M, promoveu uma imagem falsa da sexualidade sadomasoquista e a ajudou criar um clima que fosse opressivo e perigoso às pessoas que se identificavam como S/M.... Nós exigimos que o WAVPM cesse de igualar o S/M consensual ao estupro, ao assassinato, e à violência; cesse de impedir S/M erótico e que admita ter uma posição em relação ao S/M (para que esta possa então ser discutida) ou que tome uma posição que suporte o S/M consensual entre adultos. (Samois, 1980).

Embora o WAVPM se negasse insistentemente a adotar uma posição oficial sobre o S/M, diversos de seus membros anti-S/M mais fervorosos se uniram para produzia a antologia Against Sadomasochism (1982) [Contra o Sadomasoquismo]. O S/M continuou a ser um poderoso ponto crítico durante as guerras sexuais feministas, em parte porque a plausibilidade do argumento antipornografia era muito dependente da sua acusação ao S/M. Embora não tenha tido nenhuma posição explícita, o WAVPM iniciou uma fusão peculiar dos argumentos do antisadomasoquismo e da antipornografia que praticamente moldou toda ideologia e atividade feminista antipornógrafa subseqüentes. O S/M sempre serviu como o maior subtexto do movimento antipornógrafo feminista, sendo indispensável para sua coerência analítica, a sua fonte dos exemplos retoricamente mais persuasivos e seu alvo primário das prescrições de mudanças sociais. O Samois estava presente para decididamente testemunhar e discordar quando esse programa ainda era embrionário em seus estágios.

Em conseqüência de sua adiantada resistência ao movimento antipornógrafo e às suas implicações antisadomasoquistas, o Samois ajudou a quebrar a hegemonia das posições antipornógrafas e abriu as possibilidades para discussões mais amplas no feminismo sobre sexualidade. Em seus breves cinco anos de história, o Samois facilitou o estabelecimento de um mundo social para as lésbicas sadomasoquistas, ajudou a inaugurar as guerras sexuais feministas, desenvolveu críticas inovadoras à opressão sexual, e mudou fundamentalmente a comunidade lesbiana, o movimento feminista e as políticas da sexualidade. Ele foi uma das mais influentes organizações em sua era. 

Bibliografia:

Linden, Robin Ruth et al., eds. Against Sadomasochism: A Radical Feminist Analysis. East Palo Alto, Calif.: Frog in the Well Press, 1982.

Samois. What Color is Your Handkerchief: A Lesbian S/M Sexuality Reader. Berkeley, Calif.: Samois, 1979.

Samois. “This Forum is a Lie about S/M.” 1980. Um panfleto. Coleção de Gayle Rubin.

Samois. Coming To Power: Writings and Graphics on Lesbian S/M. Berkeley, Calif.: Samois, 1981.

Women against Violence in Pornography and Media. Newspage 1, no. 4 (Setembro de 1977).

___. Newspage 1, no. 6 (Novembro de1977).

___. “A Forum on S&M in the Women’s Community.” 1980. Um panfleto. Coleção de Gayle Rubin. 


1
 Traduzido por Alice Gabriel e Felipe Areda a partir de Rubin, Gayle. Samois. In: “Encyclopedia of Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender History in America”, organizado por Marc Stein, Nova York: Charles Scribner’s Sons, 2003.