Entre os séculos XI e XII, as penas de morte para os hereges não eram mais um fato inédito, mas a maioria do corpo eclesiástico ainda relutava em aceitar a situação. Pier Damiani (1007-1072) afirmou orgulhosamente que os santos estão dispostos a sacrificar a própria vida pela fé, mas não matam hereges.
Em 1144, Wazo, bispo de Liége, salvou a vida de alguns cátaros que a multidão queria jogar na fogueira. O arcebispo de Milão também protestou contra a multidão que havia linchado alguns hereges. Bernardo de Chiaravalle, que contribuiu para prender vários hereges, declarou, no entanto, que estes deveriam ser conquistados com a razão, e não com a força. Em 1162, o papa Alexandre III (1159-1181), julgando o caso de alguns cátaros, declarou que "era melhor perdoar o culpado do que tirar a vida de um inocente". Em 1165, em Narbonne, um debate público pacifico explicou a diferença entre católicos e cátaros. Em suma, na Igreja, observavam-se várias tendências sobre como lidar com os hereges.
Na verdade, foi o próprio "clemente" Alexandre III que deu um passo muito importante para o nascimento da futura Inquisição. Usando as deliberaç6es do Terceiro Concílio de Latrão, ele daria aos bispos ordens expressas para investigar sobre os hereges, mesmo com base em meras suspeitas. Ao poder leigo foi reservado o papel de subordinado do bravo executivo da instituição eclesiástica. Inocêncio III (1198-1216), com os decretos Licet heli, de 1199, e Qualiter et quando, de 1206, estabeleceu que a acusação de heresia podia ser formalizada mesmo com base em "fama publica"; ou seja, nos boatos que corriam sobre dada pessoa.
Em 1229, um concílio reunido em Toulouse, em uma região que retomara a "verdadeira fé" com as armas e o extermínio, criou oficialmente o Tribunal da Santa Inquisição. Mais tarde, o papa Gregório IX (1227-1241) tirou dos bispos o controle dos processos contra os hereges e os confiou a comissários especiais escolhidos entre dominicanos e franciscanos.
Justamente os membros das ordens mendicantes, que haviam sido acusadas de heresia, tornaram-se os mais ferrenhos perseguidores de quem professava idéias não ortodoxas. Muitos conventos franciscanos foram dotados de prisões para os hereges, mas também para os frades culpados de rebeliões.
A partir desse movimento, a Inquisição adquiriu uma estrutura autônoma, tornando-se uma verdadeira polícia da Igreja, com tarefas de investigação e repressão. Os inquisidores tinham plenos poderes, inclusive o de depor e mandar prender eclesiásticos que defendessem hereges.
O quadro foi completado por Inocêncio IV (1243-1254), que deliberou o recurso a tortura para "promover a obra de fé de maneira mais verdadeira''. Esta deveria ser realizada por autoridade secular, mas depois, por questões práticas, os inquisidores e seus assistentes também receberam permissão para "sujar as mãos", com a possibilidade de darem a absolvição uns aos outros.
Além da política de repressão, a Inquisição usou também a de "colaboração". Ainda Inocêncio IV, em 1426, autorizou que fosse reduzido o período de noviciado para os cátaros convertidos que quisessem entrar para a ordem dos dominicanos e se tornar inquisidores. Bonifácio VIII (1294-1303) permitiu "que no processo inquisitório contra a maldade herética se agisse de maneira simples e extrajudicial, longe da confusão dos advogados e do procedimento judiciário".
Os territórios da cristandade foram divididos em distritos, correspondentes as Províncias das Ordens Mendicantes. Para cada distrito, era designado um inquisidor junto com um séquito de policiais, espiões e torturadores. Os tribunais da Inquisição eram itinerantes. O terreno era preparado por um pregador, que percorria as várias cidades e povoado alguns dias antes do inquisidor e concedia indulgências a todos que abjurassem a eventuais convicções heréticas e dessem o nome de outros pecadores. Contemporaneamente, o poder temporal também contribuiu para a luta contra as heresias. Além disso, um Estado cristão que tolerasse a heresia poderia receber excomunhão, interditos, além de correr o risco de ser alvo de uma Cruzada. Frederico Barba-Ruiva, em 1184, declarou os hereges ilegais. Em 1197, Pedro de Aragão os condenou a fogueira.
O Tratado de Meaux, de 1229, que sucedeu a Cruzada anticátaros, equiparava o crime de heresia ao de lesa majestade, delito punível com a pena de morte. O imperador Frederico II emanou, entre 1220 e 1239, uma série de editos cada vez mais cruéis, com os quais condenou os hereges ao confisco dos bens, ao exílio, a prisão perpétua e, finalmente, a fogueira.
Na Franca, a condenação á fogueira, já aplicada de fato, tornou-se lei para todos os efeitos em 1270. Na Inglaterra, só foi aprovada em 1401, com o estatuto que tinha o estranho nome de Da haeretico comburendo.
aliança entre trono e altar para frear um fenômeno que ameaçava tanto a autoridade civil quanto a religiosa se tornou um dos traços constitutivos da Inquisição também nos anos seguintes a sua criação. Os tribunais da Inquisição emitiam suas condenações, mas era o "braço secular" que as executava.
Portanto, uma denúncia anônima ou a suspeita de heresia já eram suficientes para ser investigado; suspeita essa que podia ser "leve", "veemente" ou "violenta, de acordo com o juiz. '' Até mesmo a prática assídua demais da oração e do jejum podia levantar suspeita.
Diante dos tribunais da Inquisição, um suspeito era considerado culpado, a menos que conseguisse provar a própria inocência. "Para a Igreja, ser investigado equivale a ser legitimamente suspeito. O inquisidor poderá (ou melhor, deverá) investigar e julgar, partindo sempre da presunção de que o imputado — ou seja, o réu — [...] é culpado, e, conseqüentemente, deve confessar a própria culpa, o que significa que o inquisidor não deverá julgar com base no fato ou fatos provados, mas na suspeita; não no que retém dos atos, mas no que suspeita ser" (Mereu, 1200, p. 187.) Esse procedimento se contrastava bastante com o direito romano e com o germânico, de origem bárbara, ambos de tipo acusatório (ou seja, o acusador deve fornecer as provas do que afirma, e não o contrário) e baseados na presunção de inocência.
As provas e os depoimentos eram colhidos secretamente, sem o conhecimento do imputado. A construção da acusação não era nada sutil: podiam ser colhidos depoimentos de mulheres, crianças, hereges, excomungados, "arrependidos", inimigos pessoais, mentirosos declarados e criminosos. Os patrões podiam testemunhar contra os empregados, e os empregados contra os patrões. Naturalmente, também eram válidas as declarações conseguidas por meio de tortura.
O suspeito de heresia era convocado pelos inquisidores sem saber as motivações, e quando se apresentava, antes de tudo, era-Ihe perguntado se tinha idéia da razão por que fora chamado. Então, as acusações eram lidas de forma sumária. O réu não tinha direito de saber quem o acusava nem de confrontar os acusadores ou ler todos os atos que diziam respeito.
Eventuais testemunhas de defesa corriam o risco de, por sua vez, serem acusadas de cumplicidade. Aqueles que colaboravam com os inquisidores, ajudando-os a pegar um suspeito, por exemplo, obtinham, em compensação, as mesmas indulgências que os peregrinos que iam a Terra Santa.
Os processos da Inquisição não acabavam nunca com a total absolvição. Mesmo quando não era condenado, o imputado devia abjurar a heresia da qual era acusado. Em todos os casos, a instrução contra ele podia ser aberta a qualquer momento. O mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente em reincidente em caso de novo processo.
O Manual do inquisidor, de Eymerich, descreve uma série de "malicias" dos acusados nos processos: dar respostas elusivas, dizer que não sabe ou fingir-se de louco. Como diferenciar alguém verdadeiramente louco de quem finge sê-lo? Eymerich não tem duvidas: "Para ter certeza, será preciso torturar o louco, seja ele falso ou real. Se não for louco, dificilmente continuará sua farsa se tornado de dor". Por lei, a tortura só podia ser infligida uma vez, mas na verdade era repetida enquanto o inquisidor achasse necessário, com a desculpa de se tratar de uma única sessão com vários "intervalos".
Se a instrução, a tortura e os debates aconteciam em segredo, a sentença e a subsequente execução mereciam o máximo de publicidade. Como explica um eclesiástico do século XVI: "É preciso lembrar que o principal escopo do processo e da condenação a morte não é salvar a alma do réu, mas buscar o bem público e aterrorizar o povo... Não resta duvida de que instruir e aterrorizar o povo com o proferimento das sentenças... Seja uma boa ação.”
As sentenças [...] eram executadas aos domingos, durante a grande missa na catedral, com a participação das autoridades civis. Os suspeitos confessavam seus erros e abjuravam publicamente antes de se submeter à penitência (nunca chamada de pena ou punição), que podia ir de tempo de reclusão a morte, passando pela flagelação ou a peregrinação sob coação. “Aqueles que permanecessem obstinadamente fiéis as suas próprias posições ou que recaíssem na heresia eram conduzidos para fora da igreja e entregues aos magistrados com a recomendação de serem caridosos e não causarem derramamento de sangue. A suprema hipocrisia de tudo isso estava no fato de que, se o magistrado não mandasse as vítimas para a fogueira no dia seguinte, seria processado de co-autoria em heresia."
Todavia, nem sempre as execuções publicas conseguiam concretizar sua intenção de intimidar o povo. As vezes, obtinham até o efeito contrario. Em 1279, por exemplo, a multidão que assistia a execução da herege Olivia de' Fridolfi, em Parma, ficou tão revoltada com a crueldade do espetáculo (parece que foi queimada "em fogo lento") que deu início a um tumulto. O convento dominicano vizinho, que também hospedava o Tribunal da Inquisição, foi invadido e saqueado. Os frades que lá se encontravam foram expulsos a pauladas.
Nem os mortos escapavam da fogueira. Vários notáveis e eclesiásticos foram declarados hereges após a morte, e seus corpos foram exumados e entregues as chamas. O primeiro ato da Inquisição espanhola medieval, por exemplo, foi a execução póstuma do conde Raymond de Forcalquier, em 1257. A prática da condenação póstuma não tinha apenas um valor simbólico: a excomunhão era retroativa e previa o confisco dos bens pertencentes aos condenados, prejudicando os herdeiros legítimos.
Em toda a história da Igreja não faltaram contradições, crimes, perseguições e até guerras por motivos de fé. Mas, muitas vezes, eram decorrentes do fanatismo ou da ambição de soberanos ou pontífices, do clima histórico de outras épocas ou da histeria coletiva. Podia-se falar de "luzes e sombras" de um fenômeno complexo e articulado.
A organização da Inquisição determinou um verdadeiro salto de qualidade dentro dos aparatos burocráticos: a estrutura interna eclesiástica se moldou e adaptou para melhor realizar a obra dos que estavam encarregados de revelar e destruir os hereges. Os bispos foram superados em suas prerrogativas; a delação, a confissão extraída com tortura, o recurso a suplícios públicos e execuções capitais "para dar o exemplo" se tornaram práticas habituais e aceitas, se não abençoadas. E criticar ou obstar o trabalho dos inquisidores era considerado diabólico.
Mas, além disso, aos poucos caiu uma pesada capa sobre todas as práticas religiosas. Podia-se rezar em grupo, mas só nas formas e maneiras consentidas pela Igreja. Podia-se ler o Evangelho, mas só com uma autorização escrita. Podiam-se venerar os santos, mas apenas os "oficiais"; os mortos com "cheiro de santo", não reconhecidos pela Igreja, podiam ser exumados e queimados para evitar o nascimento de cultos populares incontroláveis.
O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia. Em suma, tudo que não era proibido era obrigatório. Ou melhor, às vezes o proibido e o obrigatório coincidiam.
A Inquisição medieval chegou ao ápice de sua atividade na metade do século XIV, para chegar a uma lenta decadência nos 150 anos sucessivos, em especial na Itália. Os motivos do declínio residiam paradoxalmente no sucesso de sua obra, mas também na vulnerabilidade das nascentes monarquias nacionais a qualquer forma de interferência externa.
A história que causou o cisma de Lutero, por exemplo, é tratada por canais diferentes dos inquisitoriais. Só depois da difusão da Reforma em toda a Europa, a Cúria romana relançou a Inquisição, com a intenção de impedir a difusão das idéias protestantes em todos os territórios que ainda permaneciam sob o controle da Santa Sé.