Cercada de polêmica e da expectativa de milhões de fãs, adaptação do best-seller “Cinquenta Tons de Cinza” estreia fazendo retrato romanceado e pouco fiel da cultura sadomasoquista
DANIEL OLIVEIRA
Pouco mais de dois anos atrás, eu estava em um avião, sentado ao lado de uma mulher quase debruçada sobre o livro que lia. A cada página virada, ela cruzava e descruzava as pernas, num contorcimento desconfortável que me fez pensar que ela queria ir ao banheiro.
Quando ela levantou o livro, mostrando a capa, eu entendi a situação. E, consequentemente, o efeito de “Cinquenta Tons de Cinza” sobre seus mais de cem milhões de leitores – que tem feito igrejas, pastores e países conservadores tentarem impedir as pessoas de assistirem à adaptação que estreia hoje nos cinemas.
Na semana que vem, estreia o novo filme de Clint Eastwood sobre um cara que assassinou mais de 200 pessoas no Iraque e está sendo retratado como um herói. Mas duas pessoas explorando sua sexualidade e oferecendo prazer consensual um ao outro entre quatro paredes é o que realmente machuca o coração de Jesus.
“Cinquenta Tons de Cinza” ofende a literatura, o cinema e todos os princípios da poética imaginados por Aristóteles – mas o coração de Jesus? Não, provavelmente não.
A história da jovem Anastasia Steele (Dakota Johnson) que se apaixona pelo bilionário Christian Grey (Jamie Dornan) sofre com diálogos que parecem escritos por uma adolescente que leu muitos romances da série “Sabrina” e acredita que adultos realmente falam daquele jeito quando estão atraídos um pelo outro (não por acaso, o livro de E. L. James começou como uma fan fiction de “Crepúsculo”). E se alicerça em um romance que não faz muito sentido – e, ironicamente, reforça o argumento de seus críticos.
Grey é um sadista, um dominador, em busca de uma masoquista submissa, e repete isso o filme inteiro. Só que Anastasia não se sente muito confortável com a proposta. Então, o longa consiste nele tentando fazer com que ela assine um contrato concordando com a relação, e ela insistindo em convencê-lo a assumir um romance comum, com jantares e cinema – como se o desejo dele fosse uma perversão a ser curada.
E é por isso que os praticantes de S&M odeiam o livro. Porque sadomasoquismo não é isso. Mas sim um jogo sexual entre duas pessoas que sentem prazer na dominação e na dor envolvidas. Sem entender isso, “Cinquenta Tons” é uma história sobre um riquinho mimado e meio perseguidor que não aceita um não como resposta e tenta comprar o consentimento de uma garota aborrecida que, fascinada pelo mundo que ele oferece, se faz de sonsa sobre a proposta, indecente sim, mas muito clara, que está recebendo.
E o filme da diretora Sam Taylor-Johnson acaba sendo duas horas intermináveis desse chove-não-molha. Como um amigo que te promete que, depois de meia hora escutando Thiaguinho, ele vai te levar a um show do Rolling Stones. Mas depois da meia hora de Thiaguinho, na verdade tem mais Thiaguinho.
Porque “Cinquenta Tons de Cinza” não é sobre S&M – mas sim a história de duas pessoas atraídas uma pela outra, mas que querem coisas diferentes. Quase nenhuma das sequências de sexo envolve sadomasoquismo e, em termos de ousadia, lembram mais vídeos de gatinhos que Lars Von Trier deve ter visto no YouTube entre um take e outro de “Ninfomaníaca”.
E no meio delas, o público é torturado (sem prazer) com cenas que repetem a mesma discussão sem chegar a lugar nenhum. A melhor representação do efeito e da importância delas é aquela em que Grey fala de sua infância e Anastasia, dormindo, nem se dá ao trabalho de acordar. Um bom jogo para sobreviver a elas é tomar uma bebida toda vez que Jamie Dornan tirar a camisa e uma mulher gritar na sala – e nem bonito assim ele conseguiu evitar o riso durante a premiere do filme na Berlinale ontem, quando diz coisas como “eu só vou te tocar quando você me der seu consentimento por escrito”.
Mas é Dakota Johnson que fica com a parte suja do trabalho. Para um produto voltado para mulheres, o problema de “Cinquenta Tons de Cinza” é ser terrivelmente machista. Porque, assim como a Bella Swan de “Crepúsculo”, Anastasia é recipiente vazio até conhecer Grey, que irá preenchê-la com sua sexualidade – algo ressaltado pela desnecessária virgindade da protagonista.
E Taylor-Johnson cansa de representar a dominação em cenas com Ana deitada e Grey de pé – ela associada à horizontalidade de seu fusquinha, e ele à verticalidade fálica dos arranha-céus. Não por acaso, na cena em que eles se conhecem, ela cai e se deita diante da imponência dele.
É verdade que a protagonista vai descobrindo sua voz com o passar da história. Mas Beyoncé provocou a cultura pop e fez mais pela sexualidade feminina com um verso de “Drunk in Love” – referindo-se ao marido como uma prancha de surfe na qual ela vai “rebolar na tora” – do que E. L. James em seu livro inteiro. No final, você vai querer bater nos personagens. Mas pelos motivos errados.
Fonte: JORNAL O TEMPO