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Contardo Calligaris, na Folha de S.Paulo

Gostei de “Cinquenta Tons de Cinza”, o filme -gostei do que a diretora, Sam Taylor-Johnson, soube fazer com o livro.

Em 2012, quando o primeiro volume saiu em português (ed. Intrínseca), dediquei uma coluna à trilogia de E. L. James.

Não escreveria agora sobre o filme se ele não fosse acolhido por salvas de críticas que acho bizarras.

Começou com a previsão de que o filme seria um fracasso. Ora, nos EUA, no Brasil e no mundo, “Cinquenta Tons” foi campeão de bilheteria no fim de semana de estreia.

Logo, houve as declarações de alguns líderes católicos, segundo os quais, no filme, a visão do sexo seria degradante e contrária aos ensinamentos da igreja quanto ao “caráter sublime e amoroso da intimidade sexual no casamento”. O fato é que, sistematicamente, a censura emburrece quem a pratica ou tenta praticá-la.

Quem leu E. L. James sabe que a trilogia é uma história de amor. Nenhuma novidade: um casal sadomasoquista (SM) é quase sempre amoroso, duradouro e unido por um raro respeito recíproco. Por isto os adolescentes gostam do filme e dos livros: porque contam uma história romântica.

Líderes evangélicos, como Edir Macedo e Sezar Cavalcante, também não viram, não leram ou não entenderam: acharam que o filme “glorifica a excitação sexual sem amor” e “cultua o hedonismo” ou mesmo “o sexo sem compromisso” (essa é bizarra, visto que, no filme e no livro, o compromisso é a condição para que haja uma relação).

Escutar líderes cristãos protestando contra o erotismo SM não deixa de ser um paradoxo estranho. Há várias razões pelas quais as fantasias SM são as mais frequentes no erotismo de nossa cultura, e uma delas é a glorificação do corpo supliciado na religião cristã.

Conheci dezenas de adolescentes cujas primeiras masturbações foram inspiradas por um exemplar (ilustrado ou não) da martirologia cristã, que estava na biblioteca de família sem que ninguém suspeitasse de sua carga erótica possível.

Nos anos 1970 ou 1980, na casa de todos meus amigos homossexuais e praticantes de SM pesado, na Califórnia, tinha um livro de mesa inteiramente dedicado às imagens de São Sebastião. Acho que o título era “Sebastian”. Tento encontrar esse livro sem sucesso. Algum leitor se lembra?

Seja como for, é irônico que, na bilheteria, “Cinquenta Tons” concorresse logo com a “Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, que, desde 2004, era a melhor bilheteria de estreia para um mês de fevereiro. Era e não é mais: “Cinquenta Tons” ganhou.

“Cinquenta Tons” também mobilizou instituições que lutam contra a violência doméstica, como se a relação SM entre um homem dominador e uma mulher submissa glorificasse a violência contra a mulher.

Ora, existe uma proporção inversa entre a prática do SM e a violência doméstica. A prática de dominação no SM sempre é restrita à esfera sexualizada pelo casal; ela não invade o resto da vida. Escrevi em 2012: “a dominação no sexo é justamente o que permite que, fora do sexo, Christian e Anastasia sejam um casal de iguais, cada um cioso de sua liberdade”.

Alguns acham que Christian Grey (o protagonista) é improvavelmente rico e, com isso, a trilogia se confundiria com um conto de fadas.

Você já imaginou como seriam os “120 Dias de Sodoma”, do Marquês de Sade, se os libertinos, de vez em quando, devessem se preocupar com o aumento do aluguel do castelo?

Um casal que conheço tinha encontrado o dominador que pediram a Deus (ou ao Diabo, não sei): um homem que gostasse de dominar os dois. Mas eis que, logo numa véspera de Natal, o dominador estacionara errado e, ao deixar a casa do casal depois de uma “sessão”, ele descobriu que seu carro tinha sido levado para o equivalente local do Detran. O dominador não tinha cartão, estava com pouco dinheiro e ainda precisava comprar um presente para a filha.

Ele foi resgatado por seus “escravos”, que salvaram o Natal: acompanharam o dominador ao Detran etc. Mas foi o fim de uma fantasia sexual que durava havia anos. Dá para entender por que Grey é rico?

Agora, também tenho críticas ao livro e ao filme. A principal é à ideia de que Grey seria “torto” porque foi abusado na infância e na adolescência -como se fosse necessária uma explicação que o “absolvesse” de suas fantasias. Não é preciso; as fantasias SM, além de não constituírem um transtorno, são mais que normais: são quase triviais.

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