Lucrécia e Boadicéia
A história do estupro é tão vasta que não pode ser resumida em pouco espaço. Alguns exemplos clássicos dão a medida desse crime tradicional. O rapto de Lucrécia foi devastador para Roma, conforme nos conta Plutarco, em sua Vida de homens ilustres.
Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio, invadiu, durante a noite, os aposentos de Lucrécia. Queria possuí-la. Mas ela não se intimidou, e ele ameaçou assassiná-la com desonra, colocando junto à sua vítima o corpo nu de um escravo. Pensariam que foi morta pelo marido, surpreendida em adultério. Por meio da chantagem, Sexto Tarquínio submeteu o pudor obstinado de Lucrécia. Tão logo refeita, ela confessou o ocorrido ao marido, suicidando-se em seguida. O corpo de Lucrécia foi levado em comoção até o Foro, provocando uma rebelião que depôs a família real e proclamou a República Romana em 509 a.C.
Ainda mais sangrenta é a história da rainha Boadicéia (século VI). O rei da tribo britânica dos icenos dividiu sua herança em testamento por suas filhas e também pelo imperador Nero. Queria evitar à sua viúva as dificuldades da sucessão. Mas foi em vão. Os centuriões tomaram seu palácio, torturaram sua mulher e estupraram as filhas, conforme relato de Tácito, nos Anais.
A revolta de Boadicéia insuflou os bretões contra os romanos de Londres, na época capital da colônia imperial. Foram todos assassinados. O sangue de 70 mil romanos lavou as ruas da cidade. A insurreição só foi controlada mandando vir uma legião da Germânia.
Boadicéia ingeriu veneno com as filhas. "Bebei! O veneno é menos cruel que a tirania", foram suas últimas palavras. Lucrécia e Boadicéia são testemunhas de que mesmo nos povos mais antigos, ao contrário do que se supunha, o estupro também era considerado crime.
Estupros na Bíblia
A Bíblia, obra de referência das religiões ocidentais, trata o sexo como pecado e coisa suja, algo que deve ser expiado. Talvez por isso existam tantos episódios sangrentos ligados ao sexo no Antigo Testamento.
Ló, no episódio de Sodoma e Gomorra, oferece suas filhas à turba para que as desfrutassem em troca da vida de dois hóspedes, anjos do Senhor. Tal barbaridade é recompensada por seu Deus, que ainda manda destruir a cidade, por práticas sexuais diferentes das preconizadas por ele.
Há outra história, semelhante e emblemática, da terrível situação da mulher no código de valores bíblicos. Em Juízes (19:29; 20; 21) um levita e sua concubina se hospedam numa aldeia benjamita. Uma turba quer a cabeça e o corpo dos visitantes. Muitas confabulações depois, a concubina é entregue à sanha assassina da multidão. Ela é estuprada e dilacerada por toda a noite; na manhã seguinte seu "senhor" a leva, quase sem vida.
Ao chegar a casa, ele pega o machado e a esquarteja em 12 partes e manda cada pedaço para uma tribo levita diferente. O que causa revolta aos levitas é o desrespeito para com a propriedade. Eles demonstram isso marchando até a aldeia, onde matam 50 mil benjamitas, só poupando um pequeno grupo. Mas como tinham matado todas as mulheres e crianças, resolvem em sinal de paz e reconciliação massacrar a aldeia de Jabés-Gataad. Poupam 400 jovens virgens, que são dadas aos benjamitas sobreviventes.
No Gênesis (34 e 35), Diná, filha de Lia e Jacó, é raptada e desonrada pelo príncipe Siquém. Diná era muito bonita, e o príncipe, pensando em corrigir o mal, pediu perdão e propôs casamento ao pai da moça, que aceitou com a condição de que ele fosse circuncidado. No meio da cerimônia os irmãos da moça matam o príncipe e a todos os seus soldados. Em seguida saqueiam sua cidade, levando como escravos todos os meninos e meninas.
Estupros de limpeza étnica
Em Darfur, no deserto a oeste do Sudão, mulheres e meninas são estupradas por milicianos árabes, numa batalha brutal por terra e etnia, que matou dezenas de milhares e expulsou 2 milhões de pessoas de suas casas. Os estupradores janjaweed seqüestram e estupram garotas e meninas de até 10 anos.
O fruto desses ataques está nascendo agora em Darfur, e inevitavelmente se tornará um legado de longo prazo do conflito. Em uma sociedade em que persistem tabus profundos sobre estupro e a identidade é passada, segundo a tradição muçulmana, de pai para filho, o destino destas crianças e suas mães é incerto. Os bebês janjaweed, que significa "diabo montado a cavalo", crescerão divididos entre a identidade africana e árabe e enfrentarão dificuldades de aceitação e integração no futuro.
Em um conflito que começou por disputa de terras, mas que tem sido alimentado por tensões étnicas, tais crianças carregarão um fardo pesado. Muito depois de os combates terem terminado, elas continuarão sendo um lembrete vivo da guerra.
Repressão islâmica
A crueldade oriental, sedimentada num patriarcado religioso, de origem islâmica, provoca episódios como o da jovem Zafran Bibi. Ela procurou a polícia do Paquistão no ano passado, grávida e alegando ter sido estuprada por um de seus vizinhos.
O juiz que examinou o caso não só absolveu o estuprador, mas condenou Zafran Bibi por adultério. Ela foi condenada à pena de morte por apedrejamento em praça pública. No Paquistão, vítimas de crimes sexuais são julgadas pelas rigorosas leis islâmicas.
Para que um estuprador seja considerado culpado, ele precisa confessar o crime ou ser acusado por quatro testemunhas. Todos homens. Se a corte determinar que houve consentimento, a mulher é condenada por adultério. E foi isso que aconteceu com Zafran Bibi.
A reação tecnológica
Em Paris, a Assembléia Nacional, o legislativo da França, estuda medidas radicais de controle contra estupradores em série. Ao sair de prisão, um delinqüente sexual pode ser colocado sob vigilância eletrônica. Durante 20 anos para autores de delitos, 30 anos para autores de crimes. Trata-se de uma pulseira eletrônica móvel, que permite acompanhar os deslocamentos de uma pessoa de maneira permanente por meio de um rastreamento por satélite (GPS). A técnica, que lembra os clássicos de previsão futurista do tipo 1984, de George Orwell, torna o controle do Estado sobre o apenado uma realidade, que provoca polêmica.
A defesa polêmica
O Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), da França, atuando por orientação do governo, pesquisa 48 pacientes voluntários por um período de 24 meses. O objetivo é desenvolver drogas que diminuam o hormônio que age sobre o desejo sexual. A ciproterona e a leuroprelina são ministradas sob vigilância clínica e biológica a antigos detentos, atualmente em liberdade, e submetidos a um "acompanhamento social e judiciário", com obrigação de cuidados por parte dos médicos.
Os pacientes são delinqüentes reincidentes cujo comportamento de agressão sexual não foi tratado de maneira eficiente por tratamentos psicoterápicos ou farmacológicos. Confrontado à explosão do número de delinqüentes sexuais existentes em meio à população carcerária (+105,6% entre 1995 e 2003), tornou-se urgente encontrar novos meios de ação na luta contra este tipo de crime.
Essa ação do governo francês lembra o clássico literário Laranja mecânica, de Antony Burgess, adaptado para o cinema por Stanley Kubrick, no qual o personagem é um estuprador tratado por drogas para abrandar sua fúria.