Utilizando-se de chicote, nervo de boi, chibata, bastão, urtigas, cardos espinhos, cactos ou de diversos instrumentos de tortura, a flagelação foi, em todas as épocas e culturas, um dos componentes mais importantes de uma prática especificamente humana que visava a ora punir, ora proporcionar uma satisfação sexual ou influir na procriação." Seu uso era frequente na família ocidental, e mais ainda nos colégios ingleses, antes da interdição progressiva, durante todo o século XX, dos diferentes tipos de castigos corporais infligidos aos adultos, depois às crianças.
Porém, acima de tudo, sob a forma da autoflagelação, o uso do chicote teve como função atar um laço quase ontológico entre o universo dos homens e o dos deuses. Os xamãs viam nela as molas do êxtase ou de uma perda de si; as massas pagãs a celebravam como um rito essencial à fertilidade do solo, do sexo e do amor; e, finalmente, os monges da cristandade a consideraram, a partir do século XI, instrumento de um castigo divino que permitia combater o relaxamento dos costumes e transformar o corpo de gozo, julgado abjeto, num corpo místico capaz de alcançar a imortalidade.
Popularizada por Pedro Damião, a flagelação enquanto prática da servidão voluntária unia a vítima e o carrasco. Seus adeptos acusavam-se a si mesmos a fim de compensarem com o sofrimento o prazer que o vício proporciona ao homem: prazer do crime, do sexo, da depravação. Dessa forma, a flagelação tornou-se uma busca do absoluto — essencialmente masculina —" mediante a qual o sujeito ocupava o lugar de juiz e de réu, o lugar de Deus pai e o do filho de Deus. Infligir-se um castigo significava querer educar o corpo, dominá-lo, mas também mortificá-lo para submetê-lo a uma ordem divina. Daí o emprego do termo "disciplina" para designar o instrumento visível que servia à flagelação ou aquele outro,- invisível (o cilício ou o pano de crina), usado diretamente na pele com vistas a provocar um sofrimento contínuo das carnes.
Como os santos dos grandes relatos hagiográficos, os flagelantes entregavam-se a atos de mortificação que, a princípio inspirados na instituição monástica, não tardaram a assumir o aspecto de uma autêntica transgressão.
A partir do fim do século XIII, e em ruptura com a Igreja, os flagelantes formaram grupos errantes para em seguida reagruparem-se em confrarias, a meio caminho entre a organização sectária e a corporação laica: "O importante", aponta Patrick Vandermeersch,"... é manifestar e sentir pessoalmente e de maneira profunda que a carne é feia, que seu próprio corpo é malformado, e pedir que outra corporeidade instale-se espontaneamente. A flagelação, portanto, proporcionaria a sensação de um corpo diferente."
Um século mais tarde, e após um período de eclipse, o movimento dos flagelantes ganhou nova amplitude, escapando completamente ao controle da Igreja. A flagelação tornou-se então um rito disciplinar de aspecto semipagão, depois francamente diabólico. Os homens que a ela se entregavam eram oriundos da sociedade e faziam o voto, evocando os anos da vida de Jesus, de permanecerem durante 33 dias no movimento. Usavam uma túnica branca, cobriam a cabeça com um capuz, vergastavam-se duas vezes por dia brandindo cruzes e entoando hinos religiosos. Para não serem seduzidos nem pela luxúria, nem pela gula, nem por nenhum dos pecados capitais, não ingeriam nenhuma alimentação supérflua e renunciavam a qualquer contato sexual. Dedicados ao culto da Imaculada Conceição, procuravam, pela metamorfose do corpo, esposar outro, virginal, o de Maria, e substituir sua identidade masculina por outra, assexuada, de uma virgem não maculada pelo pecado original.
Em virtude de incorrerem na desmedida, fazendo uso de metamorfoses identitárias e transgressões, os flagelantes acabaram por ser vistos como possuídos pelas paixões demoníacas que eles pretendiam vencer. No fim do século XIV, voltaram-se contra a Igreja para anunciar o advento de um Anticristo. João de Gerson condenou então essas práticas bárbaras, opondo à idolatria do corpo um cristianismo da palavra fundado no amor e na confissão. Pregando a razão contra o excesso, preferiu substituir a punição exuberante da carne pelo controle espiritual de si.
Deixando de ser uma oferenda a Deus ou um culto mariano, a flagelação foi então considerada um vício ligado a uma inversão sexual ou a um travestimento, sobretudo quando o rei Henrique III, homossexual notório, foi suspeito de se entregar a ela após ter fundado, em 1583, uma Congregação de Penitentes:
Por volta do século XVI, viu-se, com um refinamento digno de sua pessoa e de sua corte, o rei Henrique III flagelar-se em público com seus namorados nas procissões que faziam, vestidos com túnicas brancas, excitando-se dessa forma para as orgias de luxúria às quais, após a cerimônia, esses pios personagens dedicavam-se nos aposentos secretos do Louvre.
Antes um rito de mortificação visando a transformar o corpo odiado num corpo divino, a flagelação foi então assimilada a um ato de devassidão. E isto, tanto mais na medida em que os penitentes — metamorfoseados em adeptos de uma sexualidade pervertida — escolhiam não mais se vergastar as costas, como queria a antiga tradição, mas a totalidade do corpo sobretudo as nádegas, receptáculo por excelência de uma poderosa estimulação erótica. Da mesma forma, por sinal, experimentavam um prazer extremo em serem flagelados por outros e flagelarem seus próximos.
Em 1700, em sua História dos flagelantes, Boileau destacou que a flagelação era "sexual", uma vez que a "disciplina do baixo [as nádegas] substituíra a do alto [as costas]". E, para estigmatizá-la como um desvio — e não mais apenas como um vício, no sentido cristão do termo —, baseava-se numa obra de medicina, primeira no gênero, dedicada ao "uso de golpes em matéria de sexo". Mas, acima de tudo, denunciava sua feminilização, uma vez que, dizia, era agora praticada secretamente nos conventos de mulheres.
Do alto para o baixo, em seguida de Sodoma para Gomorra, a flagelação, a princípio ato purificador, agora não passava senão de uma prática de prazer, centrada na exaltação do eu. E foi sob essa forma que ela se generalizou no século XVIII entre os libertinos: Sade, um de seus mais fervorosos adeptos, associava-a à sodomia.
No fim do século XIX, após a publicação, em 1870, do romance A Vênus das peles, de Leopold Sacher-Masoch, a flagelação foi classificada pelos psiquiatras e sexólogos como protótipo de uma perversão sexual fundada numa relação sadomasoquista entre um dominante e um dominado, com o homem podendo, por exemplo, tornar-se vítima voluntária de uma mulher que o obrigasse a ser seu carrasco. E com isso, à medida que se abolia no Ocidente o uso dos castigos corporais com fins punitivos e a ciência médica tentava classificar suas diferentes práticas, a noção de disciplina foi conceitualizada como um dos pilares do sistema de pensamento típico da perversão: tanto nos manuais redigidos por juristas e psiquiatras como nas obras escritas pelos perversos para popularizar sua ars erótica. Transformada num jogo sexual e alheia a qualquer culto a Deus, a "disciplina" designa atualmente as coerções de dominação e de obediência às quais se submetem seus adeptos voluntários, consentâneos e "esclarecidos".