Androginia

Andrógino significa, na raiz, homem/mulher, mas a idéia de androginia não é claramente percebida. É confundida com uma imagem que já foi popular na arte e na literatura: rapazes delicados, que se vestem como almofadinhas, ou mulheres com corpo e semblante de rapaz. Mesmo uma intelectual do calibre de Susan Sontag confunde, ao afirmar o seguinte: "O andrógino é certamente uma das grandes imagens da estética do artifício. Exemplo: as figuras magras, desfalecentes e sinuosas da pintura e poesia pré-rafaelista de estilo Art Nouveau; os corpos esbeltos, fluidos e assexuados em gravuras e pôsteres, ou apresentados em relevo em lâmpadas e cinzeiros; a obsessiva vacuidade andrógina por trás da beleza perfeita de Greta Garbo." Sua definição representa um estilo com pouca ou nenhuma relação com a designação de andrógino no futuro.

O dualismo entre os sexos

Quando o sistema patriarcal se estabeleceu no mundo, há 5 mil anos, dividiu a humanidade em duas partes - homens e mulheres - e colocou uma contra a outra. Determinou com clareza o que era masculino e feminino, subordinando ambos a esses conceitos. Os papéis e as tarefas sempre foram distribuídos entre os sexos.

Fósseis de milhares de anos provam isso: a mulher imobilizada por suas maternidades, e o homem, nômade, explorador, caçador. Edgar Morin diz com razão que "a classe dos homens e o grupo das mulheres desenvolveram, cada um, sua própria sociabilidade, sua própria cultura, sua própria psicologia", fazendo com que surgissem duas sociedades diferentes, mais ou menos complementares segundo as épocas. Essa relação vem se reproduzindo até hoje e acabou sendo vista como fenômeno universal, próprio da humanidade.

O mito do andrógino

Relatado por Aristófanes no Banquete de Platão (427-347 a.C), encontramos o mito do andrógino, que evoca o dualismo das criaturas. No início nossa natureza era muito diferente do que é hoje. Cada humano tinha forma redonda, como uma esfera fechada sobre si mesma, com quatro mãos, quatro pernas, duas cabeças, dois órgãos sexuais e todo o resto harmonioso. Havia três espécies de seres: Andros, Gynos e Androgynos, sendo Andros entidade masculina composta de oito membros e duas cabeças, ambas masculinas, Gynos idem, porém femininas, e Androgynos composto por metade masculina, metade feminina.

Dotados de coragem extraordinária, eles atacaram os deuses, que, para puni-los e fazer com que se tornassem menos poderosos, cortaram-nos em dois. Seccionado Andros, deu origem a dois homens, que, apesar de seus corpos estarem agora separados, tinham suas almas ligadas, por isso cada um procurava sua metade. O mesmo ocorre com os outros dois. Andros deu origem aos homens homossexuais, Gynos às lésbicas, e Androgynos aos heterossexuais. Quando se encontravam, eram tomados por ternura, confiança, amor e o desejo de se fundirem ao objeto amado e constituírem um só em vez de dois.

"Se considerarmos as três espécies míticas descritas por Aristófanes, o que mais somos senão uma das duas partes do andrógino? E de que é feita uma parte do andrógino?", pergunta Elisabeth Badinter. Ele era constituído por duas metades heterogêneas, uma toda feminina, a outra toda masculina, reunidas em seu centro. Quando Zeus os separou, fez nascer duas criaturas distintas e complementares, mas que haviam perdido sua natureza dual. A espécie andrógina havia desaparecido, pois estava claro que dali em diante a criatura feminina era estranha a seu antigo companheiro, e ele a ela.

Construindo a diferença

Ao dividir a humanidade em duas partes, o sistema patriarcal dividiu cada indivíduo contra si próprio, porque, para corresponder ao ideal masculino ou feminino, cada um tem de rejeitar em si aspectos que são considerados do outro sexo, de alguma forma, se mutilando. "A norma imposta foi o contraste e a oposição. Cabe à educação calar as ambigüidades e ensinar a recalcar a outra parte de si. O ideal é parir um ser humano unissexuado: um homem “viril”, uma mulher “feminina”. Mas os adjetivos revelam o que se quer esconder: toda uma série de intermediários possíveis entre os dois tipos ideais."

Mesmo antes do nascimento o papel social - masculino ou feminino - que a criança deverá desempenhar está claramente definido. Os padrões de comportamento são distintos e determinados para cada um dos sexos. Desde muito pequenos, os meninos são presenteados com carrinhos, revólveres e bolas, ao passo que as meninas recebem bonecas, panelinhas e mamadeiras. E isso é só o início.

Reforçando a identidade de gênero

Até a Revolução Sexual e o movimento feminista, as atitudes e o comportamento de homens e mulheres eram bem definidos. A expectativa da sociedade é de que as pessoas cumpram seu papel sexual, que sofre variações de acordo com a época e o lugar. Há algumas décadas, não se admitia que um homem usasse cabelo comprido e muito menos brinco. Eram coisas femininas. As mulheres, por sua vez, não sonhavam usar calças, nem dirigir automóveis. Era masculino.

As qualidades que se enquadram nos estereótipos masculinos e femininos são facilmente observáveis. Os homens devem ser fortes, ousados, corajosos, agressivos, dominadores, competitivos, racionais e devem perseguir o sucesso e o poder. As mulheres devem ser passivas, ternas, dóceis, meigas, emotivas, delicadas, saber cuidar dos outros. É evidente que homens e mulheres possuem todos esses aspectos - ambos podem ser fracos ou fortes, corajosos ou medrosos -, dependendo do momento e das características que predominam em cada um, independente do sexo.

"Tradicionalmente, sempre se acreditou que é melhor que as qualidades do sexo oposto permaneçam em segundo plano para que uma forte identidade de gênero seja estabelecida e preservada." Provavelmente, nas escolhas amorosas somos atraídos por pessoas com quem esperamos vivenciar, ainda que de forma substituta, os aspectos de nosso próprio ser que o social não permite.

Hetero, homo ou bi

As pessoas, em maioria, acreditam pertencer a uma das três categorias: heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Caso não se aceitem membros de uma categoria fixa, buscam modificações para se enquadrarem numa delas. "Acredito que essas categorias sexuais, quando usadas como rótulos, fixam na mente uma idéia que não deveria ser fixa, mas extremamente fluida. Nós só estamos encapsulados numa categoria quando deixamos que isso aconteça conosco."

Outra interpretação do mito

Para Badinter, o modelo da semelhança pode inspirar outra interpretação do mito do andrógino. Poderíamos supor que as duas partes separadas do andrógino não eram heterogêneas. Que uma e outra era o resultado da fusão do masculino e do feminino. A união íntima resultante de suas interpenetrações explicaria que o corte do andrógino não teria dado nascimento a dois humanos especificamente diferentes, mas a duas outras criaturas andróginas, que seriam apenas os reflexos do primeiro. Este, certamente, fechado sobre si mesmo, não tinha nenhuma necessidade de um outro. A dependência foi a punição divina. Os dois novos andróginos foram dotados de caracteres sexuais complementares, que os inclinava a se fundirem de novo.

Resta o fato de que essas duas metades andróginas são menos estranhas do que freqüentemente se disse. Sua memória arcaica é comum; ela precede o corte e o aprendizado das diferenças. "O dualismo das criaturas não é discutível, mas chegou o tempo de apreender cada uma como um ser dual, dotado de todas as características da humanidade. A diferença dos sexos não exclui a interiorização desta diferença em cada um de nós. Se somos visivelmente dois seres diferentes, conhecemos o outro intimamente."

A semelhança entre os sexos

A queda das barreiras dos sexos já não é novidade. Há algum tempo não são nítidas as fronteiras entre o masculino e o feminino. É praticamente impossível encontrar algo que interesse aos homens e não às mulheres, e vice-versa. Com isso cresce a idéia de que é obsoleto o conceito de sexo em si.

No momento em que se impõe a plasticidade dos papéis sexuais, em que as mulheres podem escolher não serem mães, torna-se cada vez mais difícil determinar, de forma exata, a diferença entre o homem e a mulher. "A semelhança dos sexos é uma inovação tal que podemos encará-la em termos de mutação." O modelo de semelhança é propício para se levar em conta nossa natureza andrógina. "De bom grado admite-se hoje que o desabrochar do indivíduo passa pelo reconhecimento de sua bissexualidade."

A psicanalista norte-americana June Singer, autora do livro Androginia, vê muitos indícios de uma tendência andrógina no Ocidente, seja nos hábitos e costumes sociais, na moral, seja na percepção de milhões de pessoas que buscam como expandir a consciência de si e do mundo em que vivem.

O que é ser andrógino

Androginia é uma forma arcaica e universal de exprimir a totalidade. Mais do que uma situação de plenitude e de poder sexual, a androginia simboliza a perfeição de um estado primordial, ainda não condicionado pela cultura. É uma forma geral de exprimir a autonomia, a força, a totalidade. É o reconhecimento de uma tendência natural, espontânea, para a unidade psicológica e sua conseqüente manifestação nos demais planos da vida.

A androginia refere-se a uma maneira específica de juntar os aspectos "masculinos" e "femininos" de um único ser humano. O andrógino aceita conscientemente a interação desses aspectos: um é complemento do outro. "O arquétipo da androginia aparece em nós como um senso inato de unidade cósmica primordial, ou seja, a unicidade ou inteireza da androginia antecede qualquer separação. A psique humana é testemunha dessa unidade primordial e é, portanto, o meio através do qual podemos obter certa percepção da totalidade que inspira espanto e maravilha. A androginia provém do arquétipo do Absoluto. É um corpo sutil, o que vale dizer “não-material”, imerso nas profundidades do domínio inconsciente que todos os seres humanos partilham coletivamente. A androginia talvez seja o mais antigo arquétipo do qual temos alguma experiência."

Somos todos andróginos?

June Singer acredita que o potencial andrógino está presente em todos e sua expressão irá variar conforme o arcabouço da personalidade de cada um. É verdade que o potencial andrógino individual tem sido freqüentemente relegado, e mais freqüentemente reprimido, em especial no mundo ocidental. "Quando exploramos o material sexual nos níveis profundos da psique, inevitavelmente chegamos a um estado no qual os sentimentos sexuais são muito mais soltos e fluentes do que as pessoas normalmente se dispõem a admitir. Minha experiência clínica sugere que a orientação bissexual é muito mais difundida do que a maioria acredita. Poucas são as pessoas que não nutrem sentimentos eróticos por parceiros reais ou potenciais de ambos os sexos."

Badinter concorda com essa idéia. "Na verdade, somos todos andróginos, porque os humanos são bissexuados, em vários planos e em graus diferentes. Masculino e feminino se entrelaçam em cada um de nós, mesmo se a maioria das culturas se deleitou em nos descrever e nos querer como sendo inteiramente de um sexo."

Para a norte-americana Melinda Davis, autora do livro A nova cultura do desejo, não é necessário ter seios e estrogênio para ser nutridor; não é necessário ter pênis e testosterona para ser poderoso. A cultura já está em processo de remover a importância do ato sexual heterossexual da função da reprodução. Células de ambos os sexos são necessárias, mas não corpos - conforme evidenciado pelo sucesso da fertilização in vitro como uma nova forma principal para corpos conceberem, e o aumento dos indivíduos do mesmo sexo casados e com filhos.

Caminhamos para o fim do gênero sexual. "A identidade sexual se tornará meramente uma característica secundária, como tipo sangüíneo. Seremos identificados e escolheremos parceiros não segundo o sexo, mas segundo a compatibilidade psíquica", diz Melinda.

Já em 1965, Evelyne Sullerot percebeu que a semelhança era o modelo do futuro, e que nossas sociedades evoluíam "para a diferenciação dos indivíduos e dos grupos segundo clivagens mais sutis do que o sexo".

Por que a androginia é ameaçadora

Para Singer, a androginia raramente emerge no plano cognitivo ou da percepção e, se o faz, geralmente é reprimida, e por dois importantes motivos. Primeiro: a androginia é um estado de consciência muito distante do comum e, portanto, pode ameaçar o estado de equilíbrio de muitos. Segundo: a androginia põe em xeque diversos pressupostos acerca de nossa identidade como homem ou mulher e, portanto, ameaça nossa segurança. "A maioria de nós se inclui aqui, nós que temos interesses adquiridos nas atitudes convencionais diante do sexo - virilidade e feminidade - e frente ao gênero - masculinidade e feminilidade."

Libertando o andrógino que há em cada um

São cada vez mais numerosas as evidências na cultura de que um tipo de pessoa está se tornando um novo padrão da identidade sexual, um desejo de aspiração. Melinda Davis, que considera essas pessoas como pertencentes ao terceiro sexo, acredita que se trata de é uma identidade autodefinida que soma o melhor de ambos os mundos. É ter tudo.

Ela observa que entre os jovens esta é uma fonte de inveja não muito discreta: as pessoas do terceiro sexo, que conseguiram integrar ambos os "papéis sexuais" em suas vidas, parecem estar se divertindo mais, desfrutando de sexo mais interessante, e libertas de qualquer conflito entre os lados "masculino" e "feminino" de suas personalidades. "Eles são mais abertos ao rompimento das regras antiquadas de comportamento, aos relacionamentos com o mesmo sexo e ao embaçamento de padrões."

Singer explica os benefícios de externalizar o andrógino que está reprimido em cada um. "Quando as energias deixam de estar represadas ou de serem obrigadas a seguir canais “apropriados”, o cerne andrógino que todos os seres humanos possuímos poderá vir à tona e propiciar-nos uma nova desenvoltura de estar-no-mundo e de estar-com-nós-mesmos. O deslocamento de energias outrora consideradas separadas irá ocorrer tão rapidamente, tão suavemente, que a oscilação será praticamente indiscernível. Haverá uma aparência de equilíbrio. Sem qualquer sentimento de disjunção, poderemos ser ao mesmo tempo ternos e firmes, flexíveis e fortes, ambíguos e precisos, capazes de doar e receber."

Seres inteiros

Singer sinaliza que, ao contrário do que possa parecer, nós não nos tornamos andróginos; nós já somos andróginos. Basta sermos nós mesmos. Pode parecer a coisa mais fácil do mundo, mas para uma sociedade que se tornou perita em manipular, forçar, condicionar a psique a adaptar-se a um mundo que aparentemente exige essa adaptação, talvez haja muito a desaprender no processo. "Não precisamos mais nos ver como exclusivamente masculinos ou exclusivamente femininos; somos seres inteiros nos quais as qualidades opostas estão sempre presentes. Não se trata meramente de uma hipótese, mas de um importante princípio norteador que afeta todos os aspectos da vida, como me foi permitido verificar com as pessoas com quem trabalhei terapeuticamente."

Badinter acredita que, pondo fim ao esquema universal de complementaridade, nossa civilização talvez esteja modificando alguns traços "essenciais" da espécie humana. "Se ainda é cedo para medir todas as conseqüências (biológicas e genéticas) de uma mudança que pode se operar em várias gerações, ou mesmo em vários séculos, percebemos entretanto que o século XX inaugurou, em nossa parte do mundo, algo que se assemelha a uma nova era."

A necessidade e a dificuldade

A aceitação de nossa androginia só pode gerar melhor qualidade de vida, compreendida como potência para fruição de características que hoje identificamos como masculinas e femininas. Antepõem-se a essa necessidade as dificuldades acumuladas em milhares de anos de cisão. Registramos aqui a tendência a que talvez nenhum de nós assistirá em sua plenitude. Mas o que importa é a irreversível inclinação que a androginia toma para dar ao ser humano o que lhe foi tomado: a integralidade.