"A minha maneira de pensar, você diz, não pode ser aprovada. E que me importa? Bem idiota é aquele que adota uma maneira de pensar para os outros! Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros."
A vinte e dois de outubro de 1786, Donatien-Alphonse-François de Sade, prisioneiro nas masmorras reais havia mais de sete anos, e confinado na Bastilha desde fevereiro de 1784, começava a revisão final de sua primeira grande obra, que intitulou OS 120 DIAS DE SODOMA. Alguns a consideram sua obra prima; não pode haver dúvida de que é o alicerce em que se apóia o resto de seus trabalhos.
Se esta foi sua primeira grande obra, foi também o passo decisivo: três anos antes, Sade escrevera o DIÁLOGO ENTRE UM PADRE E UM MORIBUNDO, no qual a ferocidade de seu ateísmo e o rigor de sua visão é evidente, mas, com os 120 DIAS DE SODOMA penetrou muito, demasiado, no reino do absolutismo filosófico, de onde não pode haver escapatória. Sade declarava então guerra total à sociedade que o julgara e prendera, e a virtude que ela pregava como sendo o bem definitivo. Se, até então, fora atraído, instintivamente, pelos pólos gêmeos do prazer e do vício, o poder total de seu intelecto entrava agora na luta. A partir de então, faria tudo que pudesse para ultrajar as leis tanto da Natureza como da religião. Sade estava determinado a chocar seus leitores, como escritor algum jamais o tentara na história da literatura. Tinha consciência plena do que queria. Depois de descrever seus personagens e o plano de ação nas primeiras páginas de OS 120 DIAS DE SODOMA, o autor adverte:
"Aconselho o leitor excessivamente recatado a por meu livro imediatamente de lado, para não ficar escandalizado, pois é já evidente que não há muito de casto em nosso plano, e atrevemo-nos desde já a garantir que o haverá ainda menos na execução... E agora, leitor amigo, prepare seu coração e sua mente para a narrativa mais impura já feita desde que nosso mundo começou, um livro sem paralelos entre os antigos, ou entre nós, modernos..."
Se Sade tinha conhecimento da importância da obra que estava empreendendo, tinha também consciência dos perigos a que tal manuscrito estava constantemente sujeito, dadas às condições e o lugar da sua composição. Arquitetou, portanto, um plano que, pensou, reduziria ao mínimo a possibilidade do manuscrito se perder ou ser apreendido. Usando folhas de papel fino, de doze centímetros de largura, colou-as umas as outras de modo a firmar um rolo de doze metros de comprimento, que pensou seria relativamente fácil de ocultar. A partir de 22 de outubro trabalhou vinte noites consecutivas, das sete às dez horas, no fim das quais enchera um lado do rolo com uma letra microscópica; continuou então do outro lado, até completar o manuscrito em 28 de novembro. Mas, todas as suas precauções foram em vão: quando a Bastilha foi tomada, a maioria dos manuscritos que Sade deixara perdeu-se ou foi destruída, e nem rolo nem notas voltaram às mãos do autor. Deve ter sido especialmente ao manuscrito de OS 120 DIAS que Sade se referia ao escrever a seu procurador, Gaufridy, em maio de 1790, que sua perda lhe causara "lágrimas de sangue":
"Há momentos em que sou movido pelo desejo de juntar-me aos Trapezistas, e nada mais posso dizer a não ser que posso ir um belo dia e desaparecer por completo da cena”. Nunca fui tão misantropo como desde que voltei para o seio dos homens; e se agora, a seus olhos, tenho a aparência de um estranho, podem estar certos de que produz em mim o mesmo efeito. Não fiquei parado durante minha detenção; calcule, meu caro causídico, que terminei quinze volumes para o tipógrafo; agora que estou livre, mal me resta um quarto desses manuscritos. Por um descuido imperdoável, minha mulher perdeu alguns e deixou apreender outros; treze anos de luta para nada! O grosso desses manuscritos ficou em minha cela na Bastilha, quando dali fui transferido para Charenton, a 4 de julho; a catorze, a Bastilha foi atacada e tomada e meus manuscritos, seiscentos livros que possuía, mobiliário no valor de duas mil libras, quadros preciosos, tudo foi lacerado, queimado, levado, pilhado: uma limpeza geral, nem uma palha deixaram: e tudo isso devido à pura negligência de Madame Sade. Teve dez dias inteiros para reaver minhas coisas; não podia ter deixado de saber que a Bastilha, que estava sendo abarrotada de canhões, pólvora e soldados, preparava-se para um ataque, ou uma defesa. Então, porque não se apressou em salvar minhas coisas, meus manuscritos? — meus manuscritos, por cuja perda derramo lágrimas de sangue! Podem encontrar-se outras camas, mesas, cômodas, mas não se encontram outra vez as idéias perdidas... Não, meu amigo, não, não serei nunca capaz de expressar-lhe o meu desespero por sua perda, para mim irreparável...
Justine, Juliette, Filosofia na Alcova e La Nouvelle Justine, representam tentativas de Sade de reconstruir, de uma forma ou de outra, os elementos que expandira em OS 120 DIAS, trabalho que supunha perdido, para sempre. Mas, embora Sade nunca o soubesse, o precioso rolo não fora destruído. Foi achado na mesma cela da Bastilha em que Sade estivera preso, por um tal Arnoux de Saint-Maxim, e entrou depois na posse da família dos Villeneuve-Trans, que dele cuidou durante três gerações. No início do século atual, foi vendido a um colecionador alemão e publicado, em 1904, pelo psiquiatra alemão Dr. Ivan Bloch, sob o pseudônimo de Eugene Dühren. Bloch justificou a publicação da obra pela sua "importância científica...
Para médicos, juristas e antropólogos", acentuando em suas notas as "analogias espantosas" entre os casos citados por Sade e os registrados um século mais tarde por Krafft-Ebing. O texto de Bloch, contudo, segundo Lely observa, está repleto de "milhares de erros", os quais irreparàvelmente o desnaturam e distorcem.
Depois da morte de Bloch, o manuscrito permaneceu na Alemanha até 1929, quando Maurice Heine, por ordem do Visconde Charles de..., foi a Berlim para adquiri-lo. De 1931 a 1935, o primoroso e autorizado texto de Heine, apareceu em três volumes de formato quarto, naquilo que se deve considerar a edição original da obra.
Eis o que Heine disse sobre OS 120 DIAS:
Trata-se de um documento de valor singular, bem como do primeiro esforço, além do dos padres — e professores, para classificar as anomalias sexuais. O homem responsável por esta observação metódica, um século antes de Krafft-Ebing e Freud, merece, plenamente, a honra que lhe foi conferida pelos estudiosos, de ter as mais graves condições psicopáticas conhecidas por "sadismo".
E Lely sobre OS 120 DIAS:
Apesar das reservas que se devem fazer, OS 120 DIAS, contêm algumas das páginas mais admiráveis escritas pelo Marquês de Sade. A configuração, expressão e alcance das frases parecem mais aliados a sua correspondência... Do que as suas outras obras. A Introdução, onde os recursos da sua arte se revelam na sua plenitude, na sua forma mais espontânea e mais nova, é sem dúvida a obra prima de Sade ...
Há outras obras mais acabadas, de maior mérito literário e de conteúdo filosófico mais desenvolvido, mas Heine e Lely têm razão: OS 120 DIAS DE SODOMA é o produto seminal de todos os escritos de Sade. É talvez a sua obra prima; no mínimo, é a pedra fundamental sobre a qual assenta o edifício maciço que construiu.