Muitos pensam que Masoch foi apenas a pessoa que inspirou a criação do termo masoquismo, associando seu nome a uma perversão. Isso é um ledo engano. Masoch foi muito mais do que isso. Escritor e jornalista austríaco, foi autor de uma obra diversificada com uma vasta riqueza de elementos psicológicos e artísticos.
Gilles Deleuze, filósofo que se destacou no estudo da vida de Masoch, valeu-se das informações sobre a vida do escritor deixadas por seu secretário de nome Carl Felix Schilichtegroll, autor da obra “Sacher-Masoch e o masoquismo”, da primeira esposa, Angelika Aurora Rümelin, que mais tarde passou a usar o pseudônimo de Wanda von Sacher-Masoch, e também Wanda von Dunajew. Ela foi autora do livro “Confissão da minha vida”. Nele, conta toda a história que viveu com Masoch.
Masoch, o primeiro de quatro filhos, nasceu no reino da Galícia, hoje a atual Ucrânia, em 27 de janeiro de 1836. Filho de Leopold Johann Nepomuk Ritter von Sacher e Charlotte von Masoch. Sua mãe descendia de uma pequena nobreza ucraniana.
Fran Masoch, pai de Charlotte, que após perder um filho, desejava muito que o seu nome fosse transferido para o seu genro e depois para seu neto, de forma que assim o nome Masoch não morresse. Assim, Leopold, filho de Leopold, entrou para a história como von Sacher-Masoch.
A infância de Masoch foi marcada por alguns fatos que tiveram papéis preponderantes ao longo da sua vida. No plano social, foram dois acontecimentos políticos: o Levante da Cracóvia em 1846, cujos efeitos ele viu na Galícia, e a revolução de março de 1848, em Praga.
Em 1846, Masoch, que estava com dez anos, assiste aos massacres brutais na Galícia e à revolta dos camponeses contra os seus senhores. A pobreza e a injustiça camponesa, enriquecendo aqueles que se opunham a ela, é testemunhada em romances que ele escreveu futuramente, como “A História da Galícia”.
Em 1848, a família Masoch muda-se para Praga, onde ele começa a aprender o alemão, a língua de toda a sua obra literária, e isso ocorre aos seus doze anos. Lá ele acompanha a Revolução de Março (que foi um levante pelo reconhecimento dos povos de idioma não germânico). O que marca Masoch nesse episódio é uma combatente que usava um casaco de pele branca. Ela portava duas pistolas no cinto e um rifle nas mãos. Foi dessa forma que ele a descreveria anos mais tarde. Essa visão simples da imaginação de Masoch é confirmada por uma gravura daquele período.
Pessoalmente, duas pessoas tiveram uma influência decisiva sobre ele. A babá Handscha e a “Tia Zenóbia”. Essa babá de nome Handscha tinha as características físicas de todas as mulheres que ele amaria ao longo da sua vida, como Anna Kottowitz, Fanny Pistor e Wanda von Sacher-Masoch. Elas aparecem como reencarnações daquilo que ele chamava de seu ideal de mulher. Handscha foi a primeira mulher que lhe deu aquele gosto de crueldade. Ele ouvia as histórias que ela contava, contos eslavos, folclore, caracterizado pela violência dos seus heróis e onde as mulheres tinham papéis principais.
Handscha, ao contrário de sua mãe verdadeira, aparece para Masoch como um objeto de desejo sexual na hierarquia do poder e do amor. Ela é a imagem original da sedutora que ele não deixará de procurar por toda a sua vida. Com Handscha, ele aprende a falar russo, língua nativa dela. Durante essas narrativas, ele ficou fascinado pelo knout, um chicote de origem tártara que apareceu na Rússia por volta do século XV. Em seus escritos, ele compara Handscha à pintura de “A Virgem na cadeira” de Raphael.
Chicote de origem tártara
A Virgem na cadeira, pintada por Raphael (Raffaello Sanzio da Urbino) em 1515.
Com “Tia Zenóbia” a história é um pouco diferente. Essa era uma tia distante a quem ele denominou Zenóbia. Ele deu esse apelido, provavelmente, porque Zenóbia foi uma imperatriz poderosa do império de Palmira que reinou no século III. Seus exércitos tomaram a Síria, o Egito, a Palestina e o Líbano. Chegou até mesmo a cunhar moedas como a Rainha do Egito. Seu reinado foi breve, mas por ser uma mulher linda e poderosa, como reza a lenda, deve ter inspirado Masoch a dar esse pseudônimo.
Como a obra mais importante de Masoch é a “Vênus das Peles”, é interessante compreender como situações passadas tiveram um papel fundamental nessa obra. Em uma de suas publicações, ele retrata essa passagem de infância da seguinte forma:
“De repente, condessa orgulhosa e bela, com o grande manto de zibelina, cumprimentou-nos e beijou-me, o que sempre me levou aos céus. Então ela gritou: Vamos Leopold! Você ajudará a tirar a minha “peliça” (Peliça é um casaco de peles). Ela não teve que repetir. Segui até o quarto, tirei seu pesado casaco que mal levantei e ajudei-a vestir a magnífica jaqueta de veludo verde, enfeitada com “petit gris” (pelo de um pequeno esquilo russo) que ela usava em casa. Então... Me ajoelhei na frente dela para colocar seus chinelos bordados em ouro, senti seus pezinhos tremerem sob minha mão, me esqueci e dei-lhes um beijo ardente. A princípio minha tia olhou-me com espanto, depois desatou a rir, enquanto me dava um leve chute.”
Esse texto foi publicado na “Revue Bleue” (Revue Bleue foi uma revista política de centro-esquerda francesa publicada de 1871 a 1939).
Depois disso, ele fica fascinado por leituras nas quais as mulheres têm um papel predominante. Imagens de mártires torturados o deixam em estado de êxtase. Ele é cativado também pela obra de Rubens. Hélène Fourment, nua e envolta em peles, é um quadro que ele admira muito.
Ele também é um admirador da “Vênus de Mármore” de Auguste Rodin e testemunha isso a ele porque ambos eram contemporâneos. Ele era um pensador utópico, um homem das letras.
Em 1852, ele ingressa na Universidade de Praga, contrariando a esperança do pai que queria ver seu filho mais velho como advogado. Ele começa a estudar doutorado em filosofia e história na universidade de Karl-Franzens na cidade de Graz. Essa é a segunda maior universidade da Áustria, onde o pai havia sido transferido em 1854. Após a conclusão do doutorado em 1856, Masoch começou a lecionar história na universidade. Em 1858, dois anos depois, seu primeiro romance, “Um conto galego”, publicado anonimamente, foi aclamado pela crítica.
Masoch reconsiderou a carreira de advogado, mas devido a suas inclinações políticas, em 1859, ele foi proibido de entrar na faculdade. Nesse mesmo ano, também foi preterido como professor. A proibição partiu do governo dos Habsburgos, a família imperial austríaca.
Em 1861, ele se apaixonou por Anna Franziska von Kottowitz, esposa de um médico, que era dez anos mais velha que Masoch. Ela deixou o marido e os filhos por causa dele. Já com sua carreira acadêmica vacilante, ele resolve investir mais energia na publicação de “Queda da Hungria” e “Maria da Áustria” e também nos romances “O Emissário”, isso em 1863 e “Don Juan de Kolomea” em 1864.
Novamente é rejeitado com uma promoção a uma cátedra em 1865. Masoch começa a se dedicar quase que exclusivamente a escrever peças e romances. Apesar da sua produção literária política, ele foi atormentado pela insegurança financeira.
Muito do trabalho de Masoch são contos nacionais e romances históricos agrupados em ciclos. Suas histórias costumam ter uma mulher dominadora ou sádica com uma heroína, como no romance “Eau de Jouvence” que conta a história da sangrenta condessa Elizabeth Báthory.
Em 1869, Masoch publicou um romance altamente autobiográfico, “A mulher divorciada”, baseada em seu caso de amor com uma mulher casada, Anna Kottowitz. O livro recebeu uma reação crítica mista, alguns revisores o condenando por imoralidade e nesse mesmo ano Masoch solidificou os seus planos por um ciclo de vários romances que seriam chamados coletivamente de “A herança de Caim”. Nesse ciclo, ele esperava abordar sistematicamente o que considerava os temas importantes da humanidade, como amor, propriedade, estado, guerra, trabalho e morte.
Masoch não chega a concluir o trabalho. Escreve apenas alguns volumes, dentre eles, a “Vênus das Peles” que foi publicada em 1870. Esse pequeno romance se tornaria a obra mais duradoura de Masoch, aparecendo em muitas traduções e edições diferentes, isso muito depois da sua morte.
É uma novela sobre um jovem chamado Severin, que se apaixona por uma mulher e se oferece para ser seu escravo. Essa história não surgiu do nada. Quando Masoch tinha 33 anos, uma jovem escritora de nome Fanny Pistor, pediu-lhe conselhos sobre como escrever. E assim como o seu protagonista em a “Vênus das Peles”, ele se apaixonou por ela. Sua primeira esposa, Hulda Meister, rejeitou as suas fantasias. Então Fanny Pistor tinha tudo para ser a companheira ideal para os seus desejos.
“Vênus das Peles” descreve provavelmente a imagem mais famosa relacionada a Masoch. Uma mulher usando um lindo vestido, joias brilhantes e um enorme casaco de peles. Tudo enquanto segura um chicote. Essa imagem foi claramente inspirada em Fanny Pistor, que muitas vezes se vestia dessa maneira em seus passeios públicos. E nesses passeios, eles mantinham os seus respectivos papéis sexuais. Ele, por exemplo, sempre se sentava atrás dela no trem ou comprava uma passagem de segunda classe para que eles não fossem vistos juntos por estranhos, como sendo iguais. Ele tinha que estar sempre no papel inferior ao dela.
Em 1869, Masoch e Fanny Pistor oficializaram as coisas. Mas não com um vestido branco e uma igreja. Juntos, eles assinaram um contrato legal de seis meses, o que o designava como escravo e ela, como a sua senhora. Esse contrato estabelecido entre Masoch e Funny continha uma cláusula, segundo a qual, em uma viagem à Itália, ela seduziria outro homem que viria a ser o seu amante e deveria castigar Masoch a golpes de chicote. Em dados biográficos, consta que o amante de Fanny, um ator chamado Saviani, recusou-se a açoitar Masoch.
Já no romance, o narrador masculino, Severin von Kuziemski, conhece Wanda von Dunayev, uma bela mulher, a quem ele compara a uma deusa, a uma estátua de mármore frio embrulhada em peles. Porque ela parece encarnar a mulher ideal das suas fantasias. Aquela do passado dele na infância. Ele pede a ela para adorá-la.
Severin pede a essa Vênus das peles para assinar um contrato que o tornará seu escravo. Mas que tem duas condições: Ela nunca poderá deixá-lo completamente ou entregá-lo para ser punido por outro amante.
À medida que o romance avança, Severin tenta persuadir o leitor, por meio da sua narração da história, de que é vitimado pela mulher ou pelas circunstâncias. Em certo ponto, Wanda tenta fazer Severin admitir que tudo o que ela faz para abusar e humilhá-lo foi a seu pedido. Quando Wanda convoca o seu belo amante, o grego, para castigar Severin, ele finalmente se revela. Ele declara a sua revolta com a seguinte frase:
“A moral é que a mulher é inimiga do homem. Ela pode ser sua escrava ou sua amante, mas nunca sua companheira. Isso ela só pode ser quando tiver os mesmos direitos que ele e for igual na educação e no trabalho. Por enquanto há apenas uma alternativa: Ser martelo ou a bigorna.”
A confiança de Masoch no erotismo idealizado, ao invés da obscenidade aberta, resultou na aceitação geral de seus romances como literatura ao invés de pornografia, diferentemente do Marquês de Sade, apesar de sua inclusão frequente de flagelação e a supervalorização fetichista de roupas íntimas, especialmente as peles.
Como Gilles Deleuze observa em sua releitura altamente influente de Masoch, ele diz o seguinte:
“De Masoch, pode-se dizer, como não se pode ser de Sade, que ninguém jamais esteve tão longe, com tão pouca ofensa à decência.”
Nesse sentido, Deleuze sugere que a fantasia está no cerne da literatura de Masoch. Pode-se supor que, como o romance “A mulher divorciada”, a “Vênus das Peles” foi baseada num relacionamento íntimo de Masoch com uma mulher, nesse caso, Fanny Pistor.
Embora em 1869 Masoch tenha assinado um contrato de submissão com ela, no qual concordava em se submeter a todos os caprichos de Fanny, não havia uma trajetória unilateral entre a realidade e os seus romances. Em sua autobiografia, Angelika Aurora Rumelin, a primeira das duas esposas de Masoch, sugere que “Vênus das Peles” inspirou as relações sexuais de Masoch com Fanny Pistor e não o contrário. Na verdade, Angelika se tornou esposa de Masoch em 1873, somente depois que ela se apresentou a ele anonima e enganosamente como uma mulher nobre em peles. Assinou um contrato sexual com ele, torturou-o por meses e mudou seu nome para o da heroína cruel de Vênus das Peles, Wanda von Dunayev.
Em seu casamento, as necessidades sexuais se desenvolveram ainda mais, e ele era espancado com repreensões. Ela trazia homens e mulheres para casa para controlá-lo. Até que finalmente ele acabou deixando a esposa.
Na verdade, a linha entre as fantasias de Masoch, sua carreira de 25 anos escrevendo romances e sua vida privada se dissolveu completamente em 1886 com a publicação de PSYCHOPATHIA SEXUALIS de Richard von Krafft-Ebing, com histórias de casos de perversões sexuais. Krafft-Ebing observou a existência de um modo específico de práticas sexuais onde os homens agiam conforme o seu desejo de serem subjugados. Ele observou que essas práticas desempenharam um papel fundamental nos romances de Masoch e por isso ele chamaria essa anomalia sexual de masoquismo.
Masoch ficou compreensivelmente chocado com o fato de seu nome ter sido invocado em um livro chamado PSYCHOPATHIA SEXUALIS e ver as suas fantasias serem pintadas sob uma luz extremamente negativa. Krafft-Ebing afirma, sobre sua criação semântica da palavra masoquismo, que se Masoch escreveu uma obra como a Vênus das Peles, com o seu nome real, credenciada por sua esposa que publica sob o nome de Wanda von Sacher-Masoch, “Confissão de minha vida”, ele pode se conceder o direito de falar sobre as obras.
Aos 50 anos, a saúde mental de Masoch começou a se deteriorar drasticamente. Ele perdeu a sua orientação e sofria alucinações. Em março de 1895, ele se tornou agressivo e sua família o levou para um sanatório em Mannheim (Mannheim é uma cidade independente da Alemanha, no estado de Baden-Württemberg). A sua morte foi anunciada ao público em 9 de março de 1895. O biógrafo James Cleugh afirma que Masoch só morreu dez anos depois no mesmo sanatório onde a sua família o colocou.
Muito depois dos romances de Masoch já terem sido esquecidos e a abordagem moralista de Krafft-Ebing sobre sexologia ter sido substituída por uma teoria psicológica mais sutil, o termo masoquismo e os atos sexuais representados por eles continuam a desempenhar um papel importante na psicanálise e na tentativa de compreender o desenvolvimento da sexualidade.
Freud abordou a questão do masoquismo em vários artigos, incluindo “Uma criança espancada” de 1919 e “O problema econômico do masoquismo” de 1924.
Embora Freud associasse o masoquismo a uma rejeição das normas convencionalmente aceitas da sexualidade masculina, ele não se valeu dos escritos de Masoch para a sua análise da dinâmica “dor, prazer” ou de qualquer outro elemento do masoquismo. Somente com a publicação do livro “Sacher-Masoch — O frio e o cruel” do filósofo Gilles Deleuze em 1967 é que isso seria feito.
O mergulho revisionário de Deleuze despertou o renascimento do interesse na literatura de Masoch. Inspirou uma reconsideração acadêmica das complexidades do masoquismo.
Como consequência, o masoquismo emergiu como um tema importante em discursos culturais abrangentes sobre as convergências históricas e contemporâneas da sexualidade e da violência.
Na verdade, aqui, já juntando tudo, o sadomasoquismo abriu caminho para o mainstream, com grandes artistas como Rihanna lançando o hit “SM” em 2011, e o The Velvet Underground encontrando fama e sucesso com o hit de 1964, “Vênus in furs”.
Mais uma curiosidade: Masoch é o tio bisavô da cantora e atriz britânica Marianne Faithfull, isso pelo lado da mãe dela, Eva von Sacher-Masoch — Baronesa Erisso.
Surpreende saber quantas pessoas famosas participaram abertamente do sadomasoquismo. Da atriz americana Angelina Jolie a Joe Shuster, o criador do Superman.
Shuster até colocou os seus talentos artísticos em prática desenhando alguns quadrinhos extremamente sinistros de homens e mulheres sendo acorrentados e chicoteados.
O motivo pelo qual essa forma contraintuitiva de satisfação é tão popular pode ter a ver com o órgão mais sexy de todos: o cérebro. Segundo os neurocientistas, a dopamina, também conhecida como substância química do prazer, é normalmente ativada quando uma pessoa está feliz ou experimentando algo prazeroso, mas também é ativada para mitigar a dor. Razão pela qual algumas pessoas acham que a dor e o prazer estão intimamente ligados.
Independentemente do mecanismo subjacente, Masoch teve um impacto profundo no mundo com sua novela, mas não pôde lidar com a repulsa por suas inclinações.
Como a sua contraparte sádica, o nosso ilustre Marquês de Sade, ele infelizmente morreu sozinho em um asilo no final do século XIX.