Em Manhattan, filme de 1979, de Woody Allen, temos a seguinte trama:

 

“a história de Isaac Davis, Ike (Woody Allen), roteirista de televisão cuja esposa (Meryl Streep) o deixou para ficar com uma mulher. Agora ele está envolvido com Tracy (Mariel Hemingway), uma sofisticada porém muito doce menina de dezessete anos que o ama. Ele a adora, mas sente que não há futuro para os dois. Ele encontra Mary (Diane Keaton), amante de seu melhor amigo, que é casado: Yale (Michael Murphy), professor universitário com aspirações literárias. Ike se apaixona por Mary, mas quando Yale resolve deixar a mulher, Emily, para ficar com ela, Mary rompe com Ike. Tracy, levando sua vida adiante, faz planos de ir estudar na Inglaterra, e na hora em que está pronta para partir, Ike se dá conta, tarde demais, de tudo o que perdeu”[i].

Como diria o cineasta em entrevista a Eric Lax, em 2005, nesse filme ele pôde explorar a cidade, especificamente a ilha de Manhattan, em Nova Iorque, pois contava uma história romântica – como bem observamos a trama –, justificando a impossibilidade de explorar Londres no filme que rodava naquele momento, Scoop – O grande furo, pois ali havia “realmente uma história narrativa”[ii].

Partindo da ideia de que a cidade melhor participa das vidas dos personagens, para Allen, quando o tema é o de seus relacionamentos, encontros e desencontros amorosos e, consequentemente, a formação da sua subjetividade, e como esta ali se revela ou se acomoda, é que construiremos nossa perspectiva de análise. Não concordamos inteiramente com a afirmação de Allen em considerar uma trama de maior “narrativa” (ação) aquela em que a investigação de um assassinato está implicada, porém não nos parece relevante discutir esse tópico aqui, e sim, delimitar a escolha em observar a subjetividade desses personagens nessa cidade.

Não observaremos a trama que envolve o cenário de Manhattan e a constituição das individualidades dos personagens isoladamente, mas em comparação com outra ilha, a do castelo dos Cento e vinte dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito entre 1785 e 1789, aproximadamente, cercada não só por água, mas pelo abismo. Contextualizado na época da Revolução Francesa, do Iluminismo e da formação moderna de indivíduo, Sade nos apresenta a radicalidade da experiência subjetiva ao descrever a chegada dos libertinos ao castelo, e é justo por ela que iremos começar, antes de nos direcionar à Manhattan de Woody Allen.

O castelo

Ao acompanharmos a descrição que faz Sade do caminho a percorrer para se chegar ao castelo fica evidente a exaltação de seu completo isolamento, dos inúmeros obstáculos a ultrapassar, da paisagem inóspita que o cerca em sua natureza bruta e do abismo que se forma em volta uma vez alcançada sua muralha, tornando-o, como dirá Eliane Robert Moraes, em Sade – a felicidade libertina, “inviolável”, “segurança plena ao abrigo libertino”[iii].

“Para se chegar lá”, dirá Sade, “era preciso passar primeiro por Basileia; atravessava-se o Reno, sendo na outra margem a estrada tão estreita que era preciso sair das carruagens. Pouco depois entrava-se na Floresta Negra, penetrava-se de seguida num percurso de cerca de quinze léguas, por uma estrada difícil, tortuosa e absolutamente impraticável sem a ajuda do guia.”[iv]

Os guias, encontrados já em território do personagem libertino Durcet, eram em sua maioria ladrões e contrabandistas contratados por ele próprio, sendo assim de confiança para impedir que qualquer um, depois dessa comitiva, tentasse se aproximar do castelo.

Entrado, então, no terreno de Durcet, inicia-se a subida à montanha, “infinitamente mais difícil de vencer”, continuará o Marquês, “pois só a pé é que se consegue atingir o cume. Não porque os machos lá não cheguem, mas a vereda a seguir é ladeada por tais precipícios que é muito arriscado ir a cavalo; seis dos machos que transportavam os víveres e outros acessórios vieram a perecer, bem como dois criados que teimaram montá-los. São precisas cinco boas horas para se chegar ao cimo da montanha que, seguidamente, apresenta outra espécie de singularidade, a qual, por mais precauções que tomem, se torna uma nova barreira de tal forma insuperável que só as aves a conseguem vencer. Esse singular capricho da natureza é uma fenda que, no cimo da montanha, entre a parte setentrional e a parte meridional, mede trinta toesas, de modo que, sem o uso de artifícios, se torna impossível, depois de ter subido a montanha, tornar a descê-la. Durcet mandou unir as duas partes, entre as quais medeia um precipício com mais de mil pés de profundidade, por uma formosa ponte de madeira a qual foi derrubada depois de terem passado os últimos carregamentos e, daí em diante, deixou de haver qualquer possibilidade de comunicação com o castelo de Silling. (...) A passagem a que se chama o caminho da ponte é portanto a única por onde se pode descer e comunicar com a referida planície e, uma vez destruída, não há nenhum habitante deste mundo, seja ele de que espécie for, que possa aceder à pequena planície.” Para concluir o sítio do castelo, Sade nos conta que este “é rodeado por uma muralha com trinta pés de altura, do lado de lá da muralha há um fosso cheio de água, muito profundo, que protege uma terceira cerca em forma de galeria circular, e finalmente penetra-se por um portal baixo e estreito no pátio interior em redor do qual se erguem os aposentos”.[v]

Os obstáculos, afirmará Moraes, para se chegar ao isolamento do castelo fazem parte da dubiedade entre a defesa e a passagem: por um lado, seu conhecimento possibilita que poucos cheguem lá e, quando se chega, estão protegidos dos ataques de fora[vi]. Surge, aqui, claramente e propositadamente, a dicotomia entre o interior do castelo e o lado de fora. O primeiro, e único que interessará a Sade, representará a ruptura com a sociedade, sugerida por ele como conquista da individualidade absoluta. O segundo representa a relação “planície-civilização-medo”, formada por homens civilizados que, estando lá embaixo, “nivelados”, sequer podem enxergar, e menos ainda se aventurar, na paisagem libertina[vii].

É justamente nesse isolamento de ilha inacessível que a individualidade pode aflorar na “geografia sadiana”. O ilhamento do sujeito é social e moral, não se podendo qualificar tal solidão como desamparo, pois os libertinos rompem (com o social e o moral) juntos. A solidão desamparada e desesperada é das vítimas; os libertinos sempre afirmam sua individualidade com superioridade, vivenciam a “solidão absoluta” descrita por Blanchot, ou a “solidão perfeita” descrita por Bataille, ou a “solidão exemplar”, por Barthes[viii].

Nesse sentido, o castelo é o oposto da prisão – não é opressor e nem imposto, “o enclausuramento é decisão soberana de sua vontade e marca de uma liberdade que só se reconhece no singular”, dirá Eliane Robert Moraes. Sade oferece a radicalidade do claustro como triunfo do homem sobre o espaço, aproximando-se da imagem do “castelo interior” de Santa Teresa D’Ávila (1515-1582), também inviolável, e fortaleza da liberdade subjetiva. Tanto para Ávila quanto para Sade, o que está “fora” e civilizado não pode ameaçar a subjetividade, que é soberana[ix]. Essa aproximação percebe-se ainda nas aparições do espaço do convento na obra sadiana como local de isolamento, “escola sentimental e disciplinadora do corpo e do espírito”, capaz de preparar heroínas inocentes para serem violadas. Os conventos não serão escolas de virtudes, mas escolas de libertinagem como dita a tradição sadiana do ensino (O subtítulo dos Cento e vinte dias de Sodoma é “A escola de libertinagem”). Em outra obra[x], as irmãs Juliette e Justine serão educadas em um convento, dentro dos princípios “lascivos” da abadessa Delbène – lembremos que Justine será expulsa por não aceitar tal educação baseada em princípios não-cristãos, ficando, portanto, sem completar sua formação, desamparada e solitária (aqui, no sentido da vítima) aos 13 anos de idade. A psicanalista Elisabeth Roudinesco chamará o espaço do castelo sadiano de “mosteiro do vício”[xi], justificando a aproximação pelo excesso de regras e disciplina a que se submetem os que ali escolhem estar.

Outra ilha


Em outra ilha, a de Manhattan, na cidade de Nova Iorque, tal como a constrói Woody Allen, assumidamente fictícia, sem dever nada à realidade, mas resultado de uma coletânea de imagens que ele assume ter apreendido de outros filmes de Hollywood em que a cidade é protagonista[xii], os caminhos dos personagens em relação a sua individualidade parecem bastante distintos daqueles percorridos no castelo de Silling.

Os espaços, na narrativa, se apresentam, de início, muito amplos e, aparentemente, livres. A aura de celebração da cidade se mostra já nos planos iniciais, gerais, em que imagens de prédios, ruas, feiras, obras em andamento, parques, peixarias, restaurantes, museus, o metrô, um estádio de futebol, uma infinidade de marcas de luxo ou bastante populares como a Coca-Cola, a Broadway e até mesmo uma pilha imensa de lixo nas ruas se encerram na imagem de fogos de artifício sobre a cidade como que na comemoração de um primeiro dia de ano.

Toda essa celebração, aos poucos, irá se diluir ao percebermos os espaços específicos em que a ação dos personagens ocorre, tal como já podemos observar, nos primeiros minutos de filme, a narração em off de Isaac, em cinco tentativas de descrever a cidade para a introdução do livro que está escrevendo. Da primeira tentativa em que Isaac a romantiza em excesso, ao dizer que Manhattan “existe em preto e branco, ao som de George Gershwin”, passando pela terceira, quando a acusa de ser a imagem da “decadência contemporânea e falta de integridade individual”, até encontrar certo equilíbrio, na quinta tentativa, em que simplesmente assume ser “ora romântico, ora duro ao retratá-la”, concluindo – e isso é bastante importante para seguir nossa reflexão –, que “Nova Iorque era a cidade dele, e sempre seria”.

A utilização dos espaços pelos personagens se inicia com essa sensação de posse e liberdade, lugar em que o indivíduo parece, potencialmente, poder tudo, a cidade é lugar de exploração e aventura: Tracy, Isaac, Yale e Emily frequentam bares da moda, fazem agradáveis passeios noturnos, vão a museus, teatros, livrarias e lojas de departamento, Yale se dá ao luxo de comprar um carro que os leva a novos passeios; de diversas maneiras, enfim, possuem a cidade, usufruem dela – e assumem, como diz Isaac, que “não se pode viver nesta cidade sem uma boa renda”, o que ele constata depois de pedir demissão.

Entre todas essas cenas de conquista e domínio da cidade realizadas no dia a dia por esses personagens, surge um elemento desestabilizador, tanto no plano da narrativa romântica, como no plano espacial dessa narrativa: a personagem Mary, amante de Yale. Relembrando a trama, Mary é amante de Yale, até que eles rompem e Isaac se torna namorado de Mary, tendo por isso rompido com Tracy, a garota de dezessete anos, e finalmente Mary rompe com Isaac para ficar definitivamente com Yale, que se separa.

Inicialmente, Isaac e Mary se desentendem por uma série de discordâncias artísticas e intelectuais – entre elas, e, sobretudo esta, Mary não gosta de Ingmar Bergman. Será um passeio noturno, ao acaso, que os aproximará, formando a clássica imagem do cartaz, com suas silhuetas recortadas pelo rio East e a ponte de Queensborough. Essa proximidade entre os dois nos levará ao espaço de Mary e ao início da percepção da diluição da celebração e da posse da cidade.

O apartamento de Mary é o único cenário, até então, oposto aos que representavam os sentimentos de liberdade e amplidão; seja pela proximidade com que a câmera se coloca dos corpos dos personagens, reduzindo a sensação de amplitude, seja pela quantidade de objetos na casa, pela presença de um cão que não vemos, mas late o tempo todo, e pelo telefone que também não cessa de tocar, a claustrofobia se instaura de imediato, desestabilizando a relativa tranquilidade com que a aventura na cidade podia desdobrar-se[xiii].

Mais adiante, na trama, Mary liga para Isaac, do seu apartamento, nervosa, depois de frustrada tentativa de sair com o amante, e o convida para um passeio, justificando que ali, sozinha, já estava “ficando louca”. As atitudes de Mary começam a revelar a solidão dos outros personagens e o quanto se refugiam dela em relacionamentos amorosos. Com exceção de Tracy, de quem falaremos mais adiante, os três personagens principais, Mary, Isaac e Yale, se revelam cada vez mais próximos da solidão da vítima sadiana: desamparados. A individualidade aqui não é soberana, constitutiva de uma subjetividade dominante, mas dependente das relações que justamente se encontram na cidade e no outro, revertendo a fórmula de posse: não é a cidade que pertence ao sujeito, mas o sujeito à cidade e todas as suas relações.

A sensação de onipotência inicial do espaço celebrado em Manhattan ainda encontra outro eco contrário de Mary que insiste em afirmar que não pertence àquele lugar, mas sim à Filadélfia – e descreve três aspectos que a diferenciaria dos nova-iorquinos: na Filadélfia se acredita em Deus, não se fala sobre orgasmos em público e seus pais não tinham amantes. Suas afirmações sempre encontram uma plateia com dificuldade em entender suas exatas considerações sobre as diferenças fundamentais entre as duas cidades, mas a marca do estranhamente espacial fica definitivamente posta.

Após essas observações percebemos uma relação mais assustada da solidão desses personagens em relação à solidão dos libertinos de Sade. Em Manhattan, a claustrofobia nos leva à ideia de prisão, oposta à que apresentamos do claustro voluntário do castelo. Os amores, inseguros e encurralados, não desabrocham, no sentido de que a educação libertina deve desabrochar a liberdade.

Falta-nos ainda falar de Tracy, com quem poderíamos fechar as aproximações e diferenças entre o espaço da cidade de Manhattan e o castelo de Silling. Isaac, desde o início da narrativa se coloca como educador de Tracy, sobretudo pautado por sua diferença de idade: 27 anos. Considera que deve ser para ela apenas uma experiência, um “atalho”, ele diz, para o desenvolvimento de sua sexualidade. Porém, o que passa despercebido desse educador nada imoral, e que Tracy não só nos dá indícios, apesar de sua verdadeira paixão por Isaac, mas afirma, é que os relacionamentos devem ser curtos e transitórios. Como engana a Isaac, a aparência de donzela de romance noir, bastante caro a Sade, de bela garota loira e inocente em sua juventude, parece também nos enganar em sua fragilidade, mas é ela nossa libertina: aquela que afirma sua subjetividade, sem refugiar-se da solidão, mas vivenciando-a e que – não à toa Woody Allen homenageia Casablanca – percebe que a cidade é só um ponto de passagem, e é assim que o filme termina, com Tracy pronta a pegar um avião para outra ilha, a Inglaterra, para estudar teatro.

* Texto originalmente apresentado como palestra no II Colóquio do Grupo de Pesquisa “Literatura, cultura, linguagem: trânsitos”: A experiência moderna entre centro e periferia, sob o título “Woody Allen, Manhattan e a cidade de Nova Iorque”, em 03 de dezembro de 2010, UFPR, Curitiba, PR.

[i] LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 59.[ii] Ibid., 2008, p. 142. [iii] MORAES, Eliane Robert. Sade, a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 54.
[iv] SADE, Marquês de. Os cento e vinte dias de Sodoma. Trad. Manuel José Gomes. Lisboa: Edições Antígona, 2000, p. 61.
[v] Ibid, 2000, p. 62-63.
[vi] MORAES, op. cit., 1994, p. 54.
[vii] MORAES, op. cit., 1994, p. 67.
[viii] MORAES, op. cit., 1994, p. 62.
[ix] MORAES, op. cit., 1994, p. 98. “As muralhas de Ávila e La Coste são irmãs”, para Beatrice Didier. Eliane acrescenta Silling.
[x] Justine ou os infortúnios da virtude (1791), A nova Justine (1797) e História de Juliette (1797).
[xi] ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos perversos. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 54.
[xii] LAX, op. cit., 2008, p. 347.
[xiii] Após seu encontro amoroso com Mary, Isaac se mudou de apartamento devido a suas novas condições financeiras, o que o colocou em um espaço bastante claustrofóbico também.

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