O masoquismo foi introduzido por Freud como um conceito básico arcabouço teórico da Psicanálise, por uma questão prática uma conseqüência direta da sua clínica frente à constatação de que a dor e o desprazer não são apenas sinais de alarme dos processos anímicos, mas também alvos em si mesmo.Eduardo Vidal afirma que "partindo de um primeiro tempo, onde o masoquismo se apresenta como traço próprio de um sujeito, Freud chega à constatação final do seu caráter originário, irredutível limite que oferece à direção da cura"2.
Ao escrever limite à direção da cura e não limite à cura, o autor endossa a determinação de não recuar frente ao gozo, ao mesmo tempo que suscita a criatividade do psicanalista no sentido do desenvolvimento de um manejo balisado na presença inexorável da pulsão de morte.
Vários anos antes de apresentar explicitamente o problema econômico do masoquismo, a obra freudiana já dava uma indicação a respeito desse manejo, ao enfatizar que o segundo tempo do fantasma de espancamento só pode ser construído no decorrer da análise3. O ser espancado tem aí uma dupla função: aplacar o sentimento de culpa e substituir uma satisfação genital proibida.
Essa duplicidade pode ser ilustrada pelo fato de uma paciente, que procurou análise por ter perdido o prazer de viver, desde o falecimento do pai, relatar rindo que havia sido um dia espancada pelo mesmo com um cassetete. Ao ser indagada sobre o riso, creditou-o ao inusitado do instrumento, acrescentando que além de tê-la machucado, deixou marcas (nas paredes do aposento). Trata-se de uma encenação do segundo tempo do fantasma no registro imaginário, onde o gozo transparece no riso aparentemente sem propósito.
O segundo tempo não pode ser desvinculado dos demais: o sadismo domina o primeiro, pré-edípico, e nos dois outros a satisfação provocada é masoquista; mas a pulsão é única, parcial e não toda. A sua versão sádica permite-lhe partir em direção ao Outro para efetuar nesse campo o retorno, constituindo aí "o ponto de giro a partir do qual se orienta contra a própria pessoa"4.
Não é por acaso que a frase construída em análise é a única que contém o pronome pessoal da 1ª pessoa. Entre "o pai espanca a criança" e "uma criança é espancada" surge "eu sou espancado pelo pai".Cada analisante a construirá com os significantes que lhe são peculiares. A lei e o gozo se articulam em cada sujeito de um modo totalmente particular.
Mas como a partir daí fazer valer a ética da psicanálise?
Para responder a essa questão é preciso antes de mais nada não perder de vista que o fantasma é um resto do tempo edípico e, sendo assim, ele funciona como suporte do desejo.
Ao gozo representado pela frase fantasmática inconsciente Freud denomina masoquismo, acrescido de vários adjetivos: primário, erógeno e, principalmente, originário, fundamento dos masoquismos feminino e moral. O originário é "testemunho e resto da fase de formação em que aconteceu o amálgama da pulsão de morte e Eros, tão importante para a vida"5. Fica assim evidenciado o caráter estrutural do masoquismo, como um resto da "fundação do inconsciente no ato de fixação do representante à pulsão ... no tempo do recalque originário"6.
Diante dessa inclinação estrutural ao sofrimento, não é para se estranhar a reação terapêutica negativa apontada por Freud em "O Eu e o Isso"7, a propósito da qual ele alerta que o paciente pode piorar e reagir de maneira transtornada quando se lhe dá esperança e se mostra satisfação com o progresso do tratamento. O sentimento de culpa inconsciente surge como um movimento em sentido contrário ao do progresso da análise.
A compulsão de se fazer objeto do desejo do Outro acompanha todas as fases de desenvolvimento da libido e se revela na forma de uma compulsão à repetição. Freud se inspirou na observação de uma brincadeira do seu neto para criar esse conceito8. O Fort era repetido um número de vezes muito maior do que o Da, embora esse último representasse a presença da mãe. A partir desse tempo estruturante, Fort/Da passa a representar o sujeito no campo do Outro. Para o neto de Freud, representavam naquela ocasião a relação com sua mãe. Da representa o sujeito para outro significante, Fort, que se torna retroativamente o S1, fazendo do próprio Da o S2. Esses significantes, que podem ser qualquer som, qualquer balbucio, representam a ausência e a presença do Outro. O sujeito não está nessa cadeia simbólica S1 ® S2. Ele cai no intervalo, dividido para sempre.
S1 marca o desaparecimento do Outro e a primeira morte do sujeito, por não estar ali representado.
A ausência/presença pode também ser percebida como estranho/familiar. Assim, um menino de 10 anos, acostumado a freqüentar consultórios médicos e hospitais públicos em virtude de sua dificuldade para dormir e porque a mãe o considera agitado e esquecido, relatou o seguinte sonho na segunda sessão de análise: "eu estava num lugar estranho; quando vi, não era estranho".
Na tentativa de "fazer um com o Outro"9, o sujeito repete. E nesse processo, um saber vai sendo tecido, como uma rede intrincada de significantes em cujos intervalos ele se aloja.
Desde S1 , essa rede é ocupada por representantes da falta, "representantes da incompletude do ser, que sustentam o sujeito como desejante"10. A cada demanda corresponde uma nova malha, sem que o desejo possa jamais ser dito. Manifesta-se como um movimento que "procura recatexizar o traço mnêmico ... da experiência de satisfação original"11.
Portanto, o desenvolvimento de um manejo balisado na presença inexorável da pulsão de morte, aponta para a repetição do gozo dentro da transferência. A consistência das representações que retroagem sobre a falta são questionadas para que, após ter trilhado o caminho da impossibilidade da completude, um novo sujeito possa advir.
Bibliografia