O masoquista é aquele quem melhor exemplifica "a maneira de estabelecer uma relação lá onde nem a mínima há, entre gozo e morte" ("Les non-dupes errent", lição de 18/12/1973, inédito). Ele as reúne ao colocar seu próprio corpo à prova. Neste lugar de disjunção e interseção, onde um furo é inserido, o falo adquire seu valor e sua função de nó para enlaçar o gozo ao corpo. Podemos ler, com Bosseyroux (1995, p. 139): "O falo é o meio utilizado pelo masoquista para fazer metáfora do real". O masoquista se utiliza do falo para transportar o gozo, fora da linguagem, ao corpo sexual. Já em 1964, Lacan sugere o que irá formalizar, a partir dos anos 1970, com a teoria dos gozos:
A relação ao Outro é justamente o que faz surgir o que representa a lâmina (libido) - não a polaridade sexuada, a relação do masculino com o feminino, mas a relação do sujeito vivo com aquilo que ele perde por ter que passar, para sua reprodução, pelo ciclo sexual. Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão - que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte. (1979[1964], p. 188)
A estrutura do desejo encontra seu limite no princípio do prazer, à medida que o desejo aparece como defesa contra o gozo. Não se trata de um desejo infinito, mas um desejo nomeável na emergência do vazio real do objeto em que se funda a repetição não meramente dos traços simbólicos. A limitação do desejo então se situa no mais além do princípio do prazer ao se articular no objeto a como real. Ao delimitar o campo do desejo nestas emergências esporádicas e contingentes, este objeto ex-sistente no real conota o desejo como indestrutível. Este mais além que sustenta a ligação e a ruptura da solidariedade entre significante e gozo, como produção de perda econômica de gozo, encontra na articulação da fantasia inconsciente suas coordenadas de prazer.
Vamos, agora, percorrer o estudo freudiano acerca da subjetivação da escolha sexual do falante, pela lógica da fantasia. Esta se expressa por uma gramática pulsional, amplamente desenvolvida desde o estudo freudiano sobre o caso Schreber, até seu texto fundamental "Bate-se em uma criança". Por meio da encenação da fantasia, o sujeito quer significar o gozo que lhe escapa, gozo fora da linguagem.
A escolha sexual depende da lógica da fantasia inconsciente; esta ficção que articula o sujeito com seu gozo, pulsão, objeto, e o Outro, como lugar da linguagem. A desarmonia sexual constitutiva, inscrita sob os fundamentos da palavra e que acarreta a divisão do sujeito, impele o falante a criar uma cena, o cenário da fantasia, para acomodar as peripécias de seu erotismo.
Diante do real da diferença sexual, a fantasia se aloja no furo aberto pela castração, fornecendo as balizas que vão permitir ao sujeito articular o que dele está disjunto: sua modalidade de gozo. Vamos seguir, em Freud, a lógica da fantasia na qual se apoia Lacan.
Em 1919, em "Bate-se em uma criança", Freud ordena e decompõe a fantasia em torno da relação de feminização do sujeito pelo adulto, pelo Outro. Como o objeto na pulsão tem seu estatuto de perda, a fantasia fornece as vestimentas ao objeto sustentando-o em uma complexa montagem significante. A fantasia se inscreve no corte do traçado pulsional para fazer surgir o sujeito gramatical, de forma disfarçada. A fantasia, em sua fase terminal, "bate-se", inscreve-se, então, no limite onde confluem a lei do desejo e o gozo, numa relação genital proibida, cuja excitação libidinal é regressiva. Neste tempo, unem-se o efeito do recalque originário e o gozo masoquista, expressos na frase: "meu pai me bate".
Nesse texto, Freud traça uma contribuição importante ao conhecimento da gênese das perversões sexuais. A fantasia infantil mantém em segredo uma satisfação auto-erótica, que é traduzida por ele na fantasia de fustigação. Ele descobre, nessa fantasia, um desenvolvimento histórico bem complexo, do qual extrai a relação do sujeito com o autor da fantasia, seu conteúdo e sua significação. Na série de transformações do enunciado, ele destaca articulações redutíveis ao que há de mais elementar: a fantasia é uma frase dotada de estrutura gramatical. As diferentes transformações efetuar-se-ão em três frases: "o pai bate numa criança que eu odeio", "eu sou espancada pelo pai" e, por último, em um processo de dessubjetivação, extrai a frase gramatical "bate-se numa criança".
A pulsão parcial estrutura-se nos jogos pulsionais da fantasia. Seu objetivo é encontrar e nomear os momentos constitutivos, nos quais se encontra a monotonia repetitiva da lógica fantasmática. A fantasia trata os momentos nos quais o sujeito está interditado diante de um cenário que a ele se impõe. Os traços perversos e repetitivos permitem extrair o retorno ao "infantil". São irredutíveis a uma simples composição pulsional, concatenando-se na organização edípica. A regressão a uma perversão infantil que não persistiu porquanto recalcada, encena o traçado perverso-polimorfo na fantasia.
A composição gramatical organiza a fantasia, como dissemos anteriormente, em três fases. Em cada uma delas depreende-se a manifestação de uma posição subjetiva. A primeira fase, "meu pai bate na criança que odeio", não expressa uma fantasia masoquista, visto que a criança espancada não é o sujeito. Também não pode ser considerada sádica, porque o autor da fantasia não é o agente espancador. Seu prazer passageiro não é de ordem sexual nem de ordem sádica. A satisfação está, sim, ligada à realização de um anseio incestuoso de ser amada pelo pai. A referência ao pai indica tratar-se de uma situação de engajamento no Édipo.
Os traços perversos, cifrados nesta frase da fantasia, são sedimentos, seqüelas, cicatrizes da organização edípica que se articulam para desvelar o sujeito inserido em sua dialética. O cenário que se impõe apreende o sujeito e o fixa silenciosamente: ele tem o privilégio de ser o preferido entre outras crianças. Na lógica montada, a preferência que liga a criança que observa e o pai que bate, está me-diada por um terceiro termo, o da criança que apanha. E às expensas da criança que apanha e que acolhe explicitamente a escolha do amor paterno que a criança principal articula a preferência da qual ela se faz objeto. É uma forma de dizer: "meu pai bate na criança para me mostrar que me ama", ou ainda: "meu pai bate em outra criança por medo que eu possa crer que ele a prefira a mim". Desta cena, o sujeito deve inferir uma conseqüência: o amor do pai, mesmo significando uma lembrança de humilhação.
A segunda frase, "eu sou espancada pelo pai", a criança espancada é a autora da fantasia, na qual se mescla o prazer. Tem um caráter indubitavelmente masoquista. Com os elementos tomados de empréstimo à fase precedente, a criança fomenta sua fantasia de espancamento e se serve dela para atingir, de um modo masturbatório, um gozo sexual, graças ao qual desliza de um acidente em sua história, à fixação na estrutura. É, para o sujeito, um modo de representação que satisfaz um desejo culpado: "... ele não é apenas a punição pela relação genital proibida, mas um substituto regressivo desta, em cuja fonte ele colhe as excitações libidinais. Esta é precisamente a essência do masoquismo" (Freud, 1974[ 1919], p. 237).
A terceira fase, "bate-se numa criança", apresenta uma formulação impessoal, dessubjetivada. Seu caráter primordial é ser "portadora de uma forte excitação que, sem dúvida, é sexual". Esta fantasia é o suporte da montagem pulsional, das diversas inversões, dos destinos da pulsão.
A fantasia captura, na sua trama, um resto de gozo inacessível ao sujeito. O gozo masoquista é a expressão, para o sujeito, da solicitação da ação do Outro para se implicar na sua divisão, pelo ato de "se" fazer bater pelo significante. O "se" no infinitivo da voz passiva, em função do gozo, força a barreira do princípio do prazer. No circuito de sua satisfação, cada pulsão parcial - por meio dos objetos oral, anal, olhar, voz, suportes dos quais o sujeito se utiliza para se localizar no Outro - comporta o gozo virtualmente masoquista, de "se" fazer objeto do Outro (fazer-se comer, fazer-se cagar, olhar-se, ouvir-se). A partir de Lacan, podemos dizer, então, que o sujeito se realiza no contorno gramatical do objeto perdido de gozo, objeto a, objeto do qual extrai um excedente pulsional, insistente no pronome reflexivo "se", correlato ao objeto mais-de-gozar. Lacan torna equivalente o objeto mais-de-gozar à mais-valia de Marx, que é relativa a um excedente da relação entre trabalho e produto. Do trabalho do inconsciente, há algo que é produzido, mas não se articula no simbó-lico, a ele excede.
Determinante, no texto "Bate-se em uma criança", é a forma como Freud integra o agenciamento gramatical da pulsão à fantasia. No leito gramatical, a pulsão decomposta em seus elementos encontra seu destino. Desse desenvolvimento, podemos extrair a diferença entre uma forma gramaticalmente organizada pela fantasia e a posição do sujeito nela implicado em relação ao seu modo de gozar. Excluído o gozo pelo corte da pulsão, a fantasia encena sua recuperação.
Retomemos o desenvolvimento da tese freudiana sobre a fantasia, para depois fazermos uma comparação com a leitura de Lacan sobre a noção de gozo do Outro:
O que resta do complexo (de Édipo, verdadeiro núcleo das neuroses) representa a inclinação para o posterior desenvolvimento de neuroses no adulto. Dessa forma, a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas também seriam apenas resíduos do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo que terminou, tal como o notório "sentimento de inferioridade" corresponde a uma cicatriz narcísica do mesmo tipo. (Freud, 1974[ 1919], p. 241)
Freud havia centrado seu estudo sobre as fantasias de espancamento nas mulheres. Ao se interessar por este tipo de fantasia nos homens, acreditando encontrar um paralelismo, encontra diferenças notáveis. Nos homens, a segunda fase, "eu sou espancado pela mãe", na qual há uma substituição do pai pela mãe, é consciente. Ao surgir sob a forma de "eu sou espancado pelo pai", aí estariam os verdadeiros masoquistas, no sentido da perversão sexual. Freud ainda destaca uma outra característica do masoquismo no homem: "a adoção em seu exercício tanto quanto em suas fantasias, de uma posição feminina". Desta feminização do sujeito no masoquismo, encontrado em especial na homossexualidade. Freud extrai um denominador comum a todas as fantasias perversas, conseqüência da recusa da castração que as caracteriza. Nas mulheres, uma característica se destaca: elas estão em uma "extimidade", fora da cena na qual um menino apanha e elas estão capturadas pelo olhar. Elas "são" o olhar, podendo ser tomadas como equivalentes ao objeto a na fantasia.
Em "O problema econômico do masoquismo", Freud acrescenta que os sujeitos masoquistas recorrem a esta fantasia para colocar em cena a castração, de tal maneira que, mesmo quando não representada, ela serve para instaurar a marca do traço negativo do recalque. No texto "Bate-se em uma criança", o masoquismo ainda era considerado uma manifestação pulsional secundária ao sadismo. Dela, Freud ex-trai uma especificidade: a do retorno. A partir da observação clínica sobre a compulsão à repetição e sobre a noção de regressão, encontrada principalmente nas neuroses de destino, Freud se vê obrigado a rever seus conceitos. Mais uma vez, ele quer a confirmação clínica de sua teoria. Questiona-se então porque a compulsão à repetição se constituía num enigma portador de sofrimento, mas do qual o sujeito em análise, aparentemente buscando uma melhora, sempre retornava em seus sintomas a este ponto ignorado.
Nesta forma de retorno, tornava-se evidente que o sofrimento inerente ao traumatismo da repetição também portava prazer e gozo necessitando, segundo Lacan, do Outro para localizá-lo, para não mergulhar no pior. Comparando com os avanços lacanianos desenvolvidos a partir dos anos 1970, podemos considerar este tangenciamento de prazer e gozo correlato ao gozo do Outro, à medida que Lacan o relaciona à realidade psíquica. Destacamos o comentário de Lacan, em R.S.Í. (lição de 14/1/1975, inédito):
O que fez Freud? [...] inventou algo a que chamou realidade psíquica. [...] aqui estar no gozo do Outro. [...] O que ele chama de realidade psíquica tem um nome, é o que se chama complexo de Edipo. [...] Atar é o que faz o essencial do complexo de Édipo, e é no que, muito precisamente, opera a análise, é entrar na fineza dos campos da ex-sistência.
Freud diz que "os desempenhos da vida real dos pervertidos masoquistas harmonizam-se completamente com as fantasias de ser amordaçado, amarrado, dolorosamente espancado, açoitado, de alguma forma maltratado, forçado à obediência incondicional, sujado e aviltado" (1974[1924], p. 202). Estas encenações são imaginariamente construídas para dar conta do gozo indizível, fora da linguagem, e enlaçá-lo ao gozo do corpo, na ilusão de fazer um, de unir-se ao Outro. Por ser isto da ordem do impossível, esta "união" tem de ser inventada a partir do traço negativo.
Freud conclui que as fantasias masoquistas colocam "o indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas significam, assim, ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz um bebê. [...] Esta estratificação superposta do infantil e do feminino eqüivalerá a ser castrado - ou ser cegado, que o representa - com freqüência deixa um traço negativo de si próprio nas fantasias ..." (Ibid., p. 203).
Freud definiu o masoquismo feminino, inicialmente, pela representação fantasmática de "ser copulado", "parir", etc, que reconheceu nos perversos masoquistas que queriam ser tratados como crianças em estado de desamparo. Freud mostra claramente que o masoquismo é uma posição feminina do homem em relação ao pai. No entanto, nas diversas modalidades de masoquismo, ele observa, ori-ginalmente, o masoquismo erógeno, na base da excitação sexual. A esta, ele aproxima o prazer no sofrimento cuja "origem deve ser buscada ao longo de linhas biológicas e constitucionais, e ele permanece incompreensível a menos que se decida efetuar certas suposições sobre assuntos que são extremamente obscuros" (Ibid., p. 201-3).
Que assuntos obscuros estaria Freud nos conduzindo a pensar? Realizando uma investigação sobre o "amansamento" da pulsão de morte pela libido nessas fantasias masoquistas, ele constata que o sujeito se coloca em situações que ele considera, caracteristicamente, femininas. Para ele, estas encenações imaginárias significam "ser castrado, ou ser copulado ou dar à luz um bebê". Será o próprio sujeito o bebê a "se parir"? O masoquismo feminino expressa uma posição subjetiva do sujeito em relação ao Outro, encarnado no pai. Para Freud, o masoquismo feminino tem sua origem no masoquismo primário e erógeno, por encontrar a satisfação paradoxal do prazer no sofrimento. Qual a relação do pai e esta satisfação paradoxal no sofrimento?