sade-parte-obscuraAo contrário das místicas que faziam de seu corpo o instrumento de salvação de sua alma, os libertinos, insubmissos e rebeldes, buscava viver como deuses e, portanto, libertar-se da lei religiosa, tanto pela blasfêmia quanto por práticas voluptuosas da sexualidade. Opunham à ordem divina o poder soberano de uma ordem natural das coisas. Segundo esse individualismo barroco, a experiência prevalecia sobre o dogma e a paixão sobre a razão. "Quando dizemos: aquele senhor está apaixonado por aquela senhora", afirmava Marivaux, "é a mesma coisa que disséssemos: o sujeito viu a mulher, sua visão excitou desejos em seu coração, ele arde de vontade de enfiar seu cacete na boceta dela".

Na medida em que a ideia de transcendência parecia diluir-se e não mais permitir ao homem reportar-se a Deus para definir as forças do bem, o pacto com o Diabo tornava-se, como na lenda de Fausto, uma maneira de aceitar que a busca do prazer, ou, ao contrário, o gozo do mal, não passava da expressão de uma espécie de pulsão inerente ao próprio homem: a inumanidade do homem podia então ser vista como consubstancial à sua humanidade, e não mais como consequência de uma decadência imposta pelo destino ou pela ordem divina.

Imediatamente após a morte de Luís XIV, Philippe d'Orléans, doravante regente sem restrições, contribuiu para uma dissolução progressiva do absolutismo real. Com ele e seus companheiros de devassidão, que se autodenominavam "roués", a libertinagem' encontrou sua forma política mais consumada, a ponto, aliás, de marcar o século inteiro e ser uma das causas do advento da Revolução. Orgias, blasfêmias, especulação econômica, gosto pela prostituição, pelo luxo, pelo desperdício e pelos escândalos, apego à chibata e à transgressão: todas essas práticas concorriam para um vasto questionamento dos valores da tradição, aos quais se opunha o desejo dos reflexos instantâneos. Fascinada pelos prazeres mais excessivos, a aristocracia era assim minada pela iminência de seu próprio fim. E, nada tendo a opor a seus inimigos, corria, cega, em direção à sua ruína: "Penetremos por alguns instantes no universo aristocrático de 1789", escreve Jean Starobinski. "Tentemos compreendê-lo de dentro tal como ele próprio se compreendeu. Descobrimos então uma secreta conivência com a condenação de que ele é objeto."

Foi exatamente no cerne do ideal libertino que cresceu o marquês de Sade. Em certos aspectos, sua educação se assemelhou à de Gilles de Rais. Como este, com três séculos de intervalo, e numa França abalada por novas desordens políticas, Sade viu-se cercado, desde seu nascimento em 1740, por grandes predadores devassos, oriundos de uma nobreza arrogante, sem limites no exercício de seus prazeres, confinada no recôndito de seus castelos. "Educado com a convicção de pertencer a uma espécie superior", escreve Maurice Lever,

experimentou muito cedo o aprendizado da arrogância. Muito cedo julgou-se acima dos outros e autorizado a fazer uso deles a seu bel-prazer, a falar e agir como senhor, sem nenhuma censura de consciência ou de humanidade. Aos quatro anos, sua natureza despótica já estava formada. Os anos apenas contribuirão para consolidá-la. Desde a infância, seus atos não traduzem senão uma trágica impotência de dizer.

Mas a comparação com Gilles de Rais pára por aí. Sade, com efeito, nunca descambou para o crime radical, uma vez que foi antes com a escrita que com atos que realizou sua utopia de inversão da Lei. Príncipe dos perversos, confinado durante 28 anos sob três diferentes regimes — da fortaleza de Vincennes para o asilo de Charenton, passando pela Bastilha —, fez triunfar em sua obra o princípio de uma sociedade perversa que repousava não no culto do espírito libertino, mas em sua paródia e sua abolição.

Claro, o universo romanesco de Sade é povoado por grandes feras libertinas — Blangis, Dolmancé, Saint-Fond, Bressac, Bandole, Curval, Durcet —, mas em nenhum momento estes reivindicam qualquer filosofia do prazer, do erotismo, da natureza ou da liberdade individual. Muito pelo contrário, o que põem em ação é uma vontade de destruir o outro e se autodestruir num transbordamento dos sentidos. Em tal sistema, a natureza é claramente reivindicada como fundamento possível de um direito natural, mas sob a condição de que seja apreendida como a fonte de todos os despotismos. A natureza no sentido sadiano é atormentada, passional, excessiva, e a melhor maneira de servi-la é seguir seu exemplo. Sade distorce então o Iluminismo numa "filosofia do crime e a libertinagem numa dança da morte". Contra os enciclopedistas, que tentam explicar o mundo pela razão e por uma exposição dos saberes e técnicas, Sade constrói uma Enciclopédia do mal fundada na necessidade de uma rigorosa pedagogia do gozo ilimitado.

Eis por quê, ao descrever o ato sexual libertino — sempre fundado no primado da sodomia —, compara-o ao esplendor de um discurso perfeitamente construído. Ou seja, a princípio, o ato sexual perverso, em sua formulação mais altamente civilizada, e mais sombriamente rebelde — a de um Sade ainda não definido como sádico pelo discurso psiquiátrico —, é um relato, uma oração fúnebre, uma educação macabra, em suma, uma arte da enunciação tão ordenada quanto uma gramática e tão desprovida de afeto quanto um curso de retórica.

O ato sexual sadiano não existe senão como uma combinatória cuja significação excita o imaginário humano: um real em estado puro, impossível de simbolizar. O esperma — ou melhor, a "porra" — fala nesse caso em lugar do sujeito. "Na posição em que me instalo", diz Dolmancé a Eugénie no momento em que esta é "agarrada" por Madame de Saint-Ange, "minha vara está rente às suas mãos, senhora. Faça a mercê de masturbá-la, por favor, enquanto chupo esse cu divino. Enfie mais a língua; não se limite a lhe chupar o clitóris; faça essa língua voluptuosa penetrar até a matriz: é a melhor maneira de apressar a ejaculação da sua porra."

E, já que o ato sexual consiste sempre em tratar o outro como um objeto, isso significa que todos os objetos se equivalem e que, por conseguinte, o mundo vivo em seu conjunto deve ser tratado não apenas à maneira de uma coleção de coisas, mas segundo o princípio de uma norma invertida. O libertino, portanto, deverá procurar o último grau da luxúria nas criaturas humanas e não-humanas — mais implausíveis. "Um eunuco, um hermafrodita, um anão, uma mulher de 80 anos, um peru, um macaco, um perdigueiro descomunal, uma cabra e um garotinho de quatro anos, bisneto da velha, foram os objetos de luxúria apresentados a nós pelas alcoviteiras da princesa."

Uma vez providenciada a coleção dessas anomalias, o libertino deverá deliciar-se com ela inventando ao infinito o grande espetáculo das posições mais irreproduzíveis. Deverá enrabar o peru cortando-lhe o pescoço no instante da ejaculação, então acariciar os dois sexos do hermafrodita, ao mesmo tempo em que dá um jeito de ter no nariz o cu da velha prestes a cagar e em seu próprio o eunuco enrabando-o. Deverá passar do cu da cabra para o de uma mulher, depois para o cu do garotinho enquanto uma outra mulher seccionará o pescoço da criança: "Fui fodida pelo macaco", diz Juliette, "e de novo pelo perdigueiro, mas, no cu, pelo hermafrodita, pelo eunuco, pelos dois italianos, pelo consolo de Olympe: todo o restante me masturbou e lambeu, e saí dessas novas e singulares orgias após dez horas dos mais pitorescos prazeres."

Mas Sade não se contenta em descrever cenas sexuais extravagantes páginas a fio. Confere-lhes um fundamento social e teórico, inspirando-se tanto em Diderot, Mettrie ou D'Holbach. Em A filosofia da alcova, publicado em 1795, põe em cena, sob forma de diálogo, o encontro, na "alcova deliciosa" de Madame de Saint-Ange, entre três libertinos — Dolmancé, Augustin e o cavaleiro de Mirvel —" e uma jovem virgem de 15 anos, Eugénie de Mistival, cuja mãe é carola e o pai, depravado. Após haver descrito a iniciação de Eugénie, Sade faz Dolmancé ler o célebre panfleto que ele escreveu em 1789: Franceses, mais um esforço para serem republicanos.

Nesse texto admiravelmente construído, e não comportando nenhum relato de atos sexuais; Sade preconiza, como fundamento para a República, uma inversão radical da lei que rege as sociedades humanas: obrigação da sodomia, do incesto e do crime. Segundo esse sistema, nenhum homem deve ser excluído da possessão das mulheres, mas nenhum pode possuir uma em particular. Daí decorre que as mulheres devem não apenas prostituir-se — tanto com mulheres quanto com homens —, como não aspirar senão à prostituição pela vida afora, uma vez que esta é a condição de sua liberdade. Como os homens, devem ser sodomitas e sodomizadas na medida em que receberam da natureza pendores mais violentos que os dos homens para os prazeres da luxúria. Assim, são submetidas ao princípio generalizado de um ato sexual que imita o estado de natureza — o coito a tergo —, mas que, ao mesmo tempo, dilui as fronteiras da diferença entre os sexos.

Na Antiguidade grega, a homossexualidade era qualificada como pederastia e integrada à pólis como uma cultura necessária ao funcionamento da norma. Portanto, não excluía de forma alguma a relação com as mulheres, sobre a qual repousava a ordem reprodutiva, e apoiava-se na divisão entre um princípio ativo e um princípio passivo: um homem livre e um escravo, um menino e um homem já maduro etc. Em outros termos, sua função era iniciática e apenas os homens tinham direito a praticá-la, segundo uma hierarquia que excluía a igualdade entre os parceiros. Porém, quando um homossexual recusava qualquer contato com as mulheres, era visto como um anormal que atentava contra as regras da pólis e da instituição familiar. O perverso, portanto, não era o sodomita, mas aquele que usava sua inclinação pela sodomia para recusar as leis da aliança e da filiação.

Na época cristã — e como em todas as religiões monoteístas —, o homossexual tornou-se a figura paradigmática do perverso. O que assim o qualificava era a escolha de um ato sexual em detrimento de outro. Ser sodomita queria dizer recusar a diferença dita "natural" dos sexos, a qual supunha que o coito fosse consumado com fins procriadores. Daí resultava que todo ato sexual que infringisse essa regra era visto como perverso: onanismo, felação, cunilíngua etc. A sodomia, demonizada, foi então considerada a vertente mais escura da atividade perversa e assimilada tanto a uma heresia quanto a um comércio sexual com os animais (bestialidade), isto é, com o Diabo. Visto como uma criatura satânica, o invertido da era cristã foi então, considerado o perverso dos perversos, fadado à fogueira por que atentava contra o laço genealógico. Mas nem por isso deixava de ser tolerado, ao menos nas famílias abastadas, desde que aceitasse casar e engendrar.

Com essa obrigação à sodomia (da qual Dolmancé é o mais puro representante, uma vez que nunca "fodeu boceta em sua vida"), Sade reduz a nada o "antifísico", isto é, a homossexualidade, na medida em que esta supõe uma livre escolha pelo mesmo sexo — com seu corolário: a consciência da diferença sexual e o desejo de sua transgressão ou sua superação. Logo, ele expulsa da pólis o personagem do invertido, o que aprecia apenas o outro do mesmo sexo, isto é, justamente aquele que, havia séculos, supostamente encarnava a perversão humana mais recalcitrante.

Com efeito, se os homens e as mulheres têm como dever primordial, segundo a filosofia sadiana, serem sodomitas, isso significa que o invertido não apenas perde seu privilégio de figura maldita, como desaparece como tal em prol do bissexual: no universo sadiano, as mulheres ejaculam, se excitam e enrabam como os homens. A sodomia é aqui reivindicada como uma dupla transgressão cujo imperativo seria fundado na dominação, subjugação e servidão voluntária: transgressão da diferença dos sexos, transgressão da ordem da reprodução. É a título disso que Dolmancé se regozija com uma possível extinção total da raça humana, não apenas pela prática da sodomia, como também pelo infanticídio, o aborto, a utilização do condom.

E, se filhos têm direito a ser concebidos, também é preciso que sejam engendrados, segundo Sade, fora do âmbito de qualquer prazer sexual e em virtude de copulações múltiplas que impeçam qualquer possibilidade de identificação de um pai. Logo, não podem ser senão propriedade da República, e não dos pais, devendo ser separados da mãe desde o nascimento para se tornarem objetos de prazer. A alcova sadiana repousa então na abolição da instituição do pai e na exclusão da função materna: "Aprenda, madame", diz Dolmancé à mãe de Eugénie, "que não há nada mais ilusório que os sentimentos do pai ou da mãe pelos filhos, e destes pelos autores de seus dias ... Não devemos nada a nossos pais porque os direitos de nascença não estabelecem nada, não fundamentam nada."

Por conseguinte, como boa aluna de seu professor, e depois de ler o panfleto, Eugénie sodomiza sua mãe. É quando Dolmancé pede a um valete para contaminar esta última. Em seguida, com a ajuda de duas mulheres, apodera-se de uma agulha a fim de "lhe costurar a boceta e o buraco do cu" à guisa de punição. Por fim, dirigindo-se ao cavaleiro, acrescenta: "Adeus, cavaleiro, não vá comer madame no caminho, lembre-se de que ela está costurada e com sífilis".

Como podemos constatar, aos olhos de Sade só é aceitável a coletividade dos irmãos predadores, as mulheres tornando se ora seus carrascos, porque os superam no vício, ora suas vítimas, quando se negam a obedecer às leis de uma natureza integralmente tomada pelo exercício do crime. Sade propõe, de certa forma, um modelo social fundado na generalização da perversão. Nem interdito do incesto, nem separação entre o monstruoso e o ilícito, nem delimitação entre loucura e razão, nem divisão anatômica entre homens e mulheres: "Para conciliar o incesto, o adultério, a sodomia e o sacrilégio", diz ele, "o pai deve enrabar sua filha casada com uma hóstia."

É em nome dessa mesma generalização da perversão que ele propõe "destruir para sempre a atrocidade da pena de morte". Se o homem é assassino por natureza, diz Dolmancé, deve obedecer à sua pulsão. Dessa maneira, tem o direito, e mesmo o dever, de matar o outro sob o impulso de suas paixões. Em contrapartida, nenhuma lei humana pode substituir friamente a natureza para permitir que o assassinato se torne legal. Em outros termos, é porque a natureza é essencialmente criminosa que a abolição da pena de morte deve ser incondicional.

Em apoio a seu engajamento abolicionista, Sade acrescenta um argumento pragmático: a pena de morte não serve para nada. Não apenas não reprime o crime, que é natural no homem, como acrescenta um crime a outro, fazendo morrer dois homens no lugar de um."

Em Os 120 dias de Sodoma, obra de fôlego redigida na prisão entre 1785 e 1789 e concebida no modelo das Mil e uma noites, Sade descreve o sistema dos casamentos imaginado por quatro ilustres libertinos riquíssimos, incestuosos, sodomitas, devassos, criminosos, no fim do reinado de Luís XIV. Blangis, viúvo de três mulheres e pai de duas filhas, torna-se esposo de Constance, filha de Durcet, enquanto este se casa com Adelaide, filha de Curval, o qual por sua vez casa-se com Julie, filha mais velha de Blangis. Quanto ao bispo, irmão de Blangis, sugere entrar no círculo das alianças nele introduzindo Aline, sua sobrinha, segunda filha de Blangis, com a condição de que o deixem participar das três outras. Cada pai conserva sobre suas filhas um direito de fornicação, e nada permite dizer que Aline seja filha de seu pai e não de seu tio, uma vez que este foi, anteriormente, amante de sua mãe, logo, de sua cunhada, razão pela qual assume sua educação. Constituída em uma sociedade de celerados, essa estranha família decide reunir-se no lúgubre castelo de Silling e se cercar de "fodedores" e de dois haréns: garotos de um lado, garotas do outro.

Logo, é pela institucionalização desse sistema de aliança, troca e filiação, que desafia, parodiando-as, todas as regras do parentesco, que os quatro libertinos — Blangis, Durcet, Curval e o bispo — podem em seguida entregar-se a todas as exações possíveis segundo um ritual esmeradamente organizado. O castelo de Silling se parece com um mosteiro do vício em cujo interior todos os momentos da vida são submetidos a uma rigorosa codificação. Cada sujeito é metamorfoseado num objeto inerte, uma espécie de vegetal, cujos comportamentos são mensurados e avaliados em seus menores detalhes. Gestos, pensamentos, maneiras à mesa, defecação, toalete íntima, sono, roupas: tudo é vigiado e passa à alçada do rito. Nesse lugar mortuário, os humanos são reduzidos a coisas sobre as quais reinam déspotas que são igualmente coisas, uma vez que obedecem à regra de um confinamento voluntário que não passa da realização de uma fetichização da existência humana. No cerne desse universo lúbrico, imundo, abjeto, comandado pela lei do crime, ninguém pode escapar a seu destino: nem os carrascos nem as vítimas.

Dessa forma, durante quatro meses, dia a dia, as genealogias perversas são construídas em virtude de um relato por sua vez elaborado no modelo de uma historiografia pervertida: os adolescentes são "casados" entre si — Michette e Giton, Narcisse e Hebe, Colombe e Zélarnir, Cupidon e Hyacinthe — a fim de serem todos desvirginados, masturbados, sodomizados, depois torturados pelos libertinos com a cumplicidade de suas "esposas" — que são também suas filhas — e na presença de quatro "historiadoras", ex-prostitutas já passadas dos 50 anos e que têm como missão não apenas fornecer aos atores desse teatro do vício a matéria-prima de que eles precisam, como produzir o relato de seus horrores: Madame Duelos, qualificada de "belo cu"; Martaine, dita "mamãe gorda"; madame Champville, a adepta de Safo; e, finalmente, Desgranges de "cu estriado", amputada de três dedos, de um mamilo, de seis dentes e de um olho.

É no coração desse banquete infinito, em que se sucedem orgias e discursos, que se elabora um catálogo da sexualidade perversa, que servirá de referência, um século mais tarde, para os artífices da sexologia. Eis alguns exemplos disso, escolhidos entre as "150 paixões de segunda classe":

Ele chupa um cu merdáceo, masturba esse cu merdáceo à língua e se masturba num cu merdáceo, depois as três meninas mudam. ... Ele quer quatro mulheres; fode duas delas na boceta e duas na boca, zelando para não enfiar o pau na boca de uma senão ao sair da boceta da outra. Durante esse tempo, uma quinta vai atrás dele e agita um consolo no seu cu.

Outros exemplos, dentre as 150 paixões assassinas:

Ele gostava de ver uma vela queimar até o fim no ânus da mulher: ele a amarra na ponta de um fio e a atocha com o toco... Um bugre coloca-se embaixo de uma torre, num lugar guarnecido de pontas de ferro. Jogam em cima dele, do alto da torre, diversas crianças de dois sexos que ele enrabou antes: ele se compraz em vê-las serem transpassadas e chafurdar em seu sangue.

Aspirando dessa forma a dar à sociedade um fundamento que inverta a Lei, Sade pretende-se o grande domesticador de todas as perversões. Eis por quê, ao lermos alguns de seus grandes textos — sobretudo os famosos 120 dias de Sodoma -,vemo-nos mergulhados no coração de um relato estarrecedor, que, em virtude de narrar com tal furor as situações mais monstruosas, acaba por se transformar em seu contrário, a ponto de lembrar um jogo recreativo em que viriam soçobrar todas as fantasias típicas dessa perversidade polimorfa que caracteriza o mundo da infância. Um mundo cruel feito de aranhas sem patas, humanos disformes, quimeras, aves esquartejadas, em suma, todo um breviário da desconstrução corporal que, sabemos, permite à criança projetar para fora de si o terror que lhe inspira sua entrada no universo da linguagem.

Daí o paradoxo: ao inventar um mundo centrado na absoluta transparência dos corpos e da psique, isto é, numa infantilização fantasística das condutas humanas, Sade propõe um modelo de laço genealógico que elimina a perversão para melhor normalizá-la — e, portanto, impedi-la de desafiar a Lei. Assim, tenta — sem conseguir, uma vez que dela quer fazer a Lei aboli-la enquanto parte obscura da existência humana. A esse respeito, reproduzimos de bom grado o ponto de vista de Michel Foucault segundo o qual Sade teria inventado um "erotismo disciplinar": "Que se dane então Sade; que se dane a sacralização literária de Sade: ele nos entedia, é um disciplinar, um sargento do sexo, um amanuense dos cus e seus equivalentes."

É portanto com Sade, no fim do século XVIII, e com o advento do individualismo burguês, que a perversão torna-se a experiência de uma desnaturalização da sexualidade que imita a ordem natural do mundo. Entretanto, embora afirme que a natureza humana é a fonte de todos os vícios e que o homem é compelido a servi-la, Sade não consegue domesticar a perversão. Claro, ela é a Lei que substitui qualquer Lei divina, porém, ao mesmo tempo, escapa ao controle dos homens, uma vez que se grava no mármore da natureza em estado de perpétuo movimento.

Como consequência, através dessa inversão sadiana, a perversão é como dessacralizada no exato momento em que Deus, à imagem do poder monárquico, é despojado de sua soberania. E, no grande gesto sadiano de furor selvagem, ela é propelida para além do eixo do bem e do mal, uma vez que não desafia mais nada senão a si própria: "O senhor não pode ser ameaçado", escreve Christian Jambet, "porque ninguém consegue ser mais bárbaro que ele."

Por outro lado, se não houvesse passado de um mero libertino, pornógrafo e panfletário, levando uma existência de dândi no contexto de uma época dominada pela tranquilidade, o marquês nunca teria sido capaz de ocupar essa postura única de príncipe dos perversos na história ocidental (literária e política). Profanador da Lei, inventor de uma erótica disciplinar, senhor que desafia apenas a si próprio, miasma obsceno jogado às traças por três regimes sucessivos, em suma, criador de uma linguagem do êxtase textual capaz de resistir a todos os interditos, Sade é também aquele que tornou desejável o mal, desejável o gozo do mal, desejável a perversão enquanto tal. Nunca pintou o vício para torná-lo detestável?

Para compreender a lógica das inversões permanentes que fizeram da obra sadiana o paradigma de um novo olhar dirigido à perversão e do homem Sade um objeto de vergonha, depois um caso clínico, convém analisar a dialética que une sua vida à elaboração de sua obra. "Sade", escreve Bataille, "não teve em sua vida senão uma ocupação, que definitivamente o arrebatou, a de enumerar até o esgotamento as possibilidades de destruir os seres humanos, destruí-los e gozar com o pensamento de sua morte e de seu sofrimento."

Sade passou sua infância entre um pai libertino devasso e sodomita, gostando tanto de meninas quanto de meninos e uma mãe que o entregou bem jovem à amante de seu pai, a esposa do príncipe de Condé. Com a morte do príncipe, foi adotado pelo irmão deste, o conde de Charolais, conhecido por sua crueldade e depravação: na caça, atirava em seus semelhantes por diversão — e mais ainda nos operários que trabalhavam em seus domínios.

Aos cinco anos, Donatien não manifestava nem afeto nem culpa, deleitando-se em infligir às outras crianças todo tipo de violência. Foi então que seu pai decidiu enviá-lo para a Provence, para a comunidade de Saumane, onde foi recebido por irmãs que o trataram como um pequeno Jesus. Todos os mimos de que foi objeto só fizeram aumentar sua arrogância e sua fúria, até o dia em que foi posto sob a tutela de seu tio, Paul Aldonse de Sade, abade libertino, voltairiano e erudito, apaixonado pela flagelação e a pornografia, e vivendo em companhia de duas mulheres (uma mulher e sua filha), das quais dispunha a seu bel-prazer. Diante do sobrinho, a quem iniciou em uma imensa cultura literária e histórica, embora confiando sua educação a um preceptor, entregava-se à devassidão com lavadeiras e prostitutas.

Quando completou dez anos, Donatien deixou o castelo de Saumane e voltou para Paris a fim de ingressar no famoso colégio Louis-le-Grand, dirigido por jesuítas. O ensino que recebeu era acompanhado de numerosas referências à arte teatral, a que também vinha se somar uma prática cotidiana da chibata e dos castigos corporais. Tornando-se adolescente e iniciado na sodomia pelos professores e alunos do colégio, o jovem Sade adquiriu o hábito de passar seus verões no campo com uma ex-amante de seu pai, Madame de Raimond. Cercado por um bando de mulheres mais ou menos libertinas, era tratado como um querubim a quem masturbavam e davam banhos de óleo de amêndoa, o que extasiava o conde, que ficou literalmente apaixonado pelo filho. Assim, introduziu-o no mundo da aristocracia, onde o rapaz iniciou-se na prática da libertinagem.

Foi quando entrou para o serviço do exército real como tenente, passando alguns anos nos campos de batalha, onde revelou uma inclinação irreprimível para o assassinato. Jogador e devasso, Donatien escolheu viver em Paris, enquanto seu pai, arruinado pelos vícios e prodigalidades, esfalfava-se para lhe arranjar um bom partido. Depois de desejar se casar com uma mulher nitidamente mais velha que ele, pela qual se apaixonara, aceitou a mão de Renée-Pélagie, uma jovem e rica burguesa, mais para feia, de feições viris e maltrapilha. A mãe desta, Marie-Pélagie de Montreuil, apelidada de Presidenta, tinha apenas um objetivo nesse negócio: ligar o destino de sua família a um dos mais prestigiosos nomes da nobreza francesa.

Instalado na casa da sogra em 1763, Sade infligiu toda sorte de baixezas, surras e injúrias à sua esposa, às quais esta curvou-se por obediência à exigência materna, mas também porque, ao lado do furioso marido, tinha a sensação de viver acima das Leis. Quanto à Presidenta, manteve com o genro, pela vida afora, uma relação de ódio e fascinação que os confinou a ambos numa perpétua luta de morte. Quanto mais ela procurava submetê-lo à soberania do Bem, mais ele a desafiava com atos transgressivos que a remetiam não apenas à sua própria impotência em domá-lo, como à imagem invertida da virtude cuja Lei ela pretendia encarnar. "Madame de Montreuil opõe a seu adversário, confuso e caótico", escreve Maurice Lever, um inflexível rigor, um espírito de ordem e de método. Ela é quase certeira em seu cálculo, sempre exata e diligente, utilizando nesse jogo as precauções do felino que, pacientemente, espreita sua vítima e, depois, num súbito impulso, atira-se sobre ela. Seu ódio será tanto mais feroz quanto mais ela se sentir enganada após ter sido seduzida.

Por conseguinte, o casamento não impediu o marquês de se entregar a seus vícios. E foi com Jeanne Testard, uma jovem operária grávida que às vezes fazia "programas", que ele voltou a se enfurecer contra a religião. Um dia, ao mesmo tempo em que ejaculava num cálice, introduziu-lhe hóstias no ânus, depois de se flagelar com uma palmatória em brasa. Obrigou-a no fim a blasfemar e tomar um laxante para que se aliviasse sobre um crucifixo.

Denunciado, depois encarcerado no torreão de Vincennes, Donatien decidiu escrever livros. Dois anos mais tarde, instalava-se no castelo de Lacoste, na Provence. Ali levou uma vida mundana, arruinou-se e encetou uma carreira de homem de teatro. Após a morte do pai, que se voltara para a religião, tornou-se o homem mais devasso do reino da França, conhecido e temido ao mesmo tempo por suas extravagâncias e seus incontáveis casos com atrizes. Antes mesmo de haver escrito, transformara sua vida em matéria-prima de uma obra vindoura.

Em 1768, cercado por seus criados, entregou-se a outros atos de blasfêmia, flagelação e sodomia com Rosa Keller, uma fiandeira de algodão relegada à mendicância. Após um longo processo, foi preso domiciliarmente em seu castelo, continuando a provocar escândalos em Marselha. Durante uma noite de devassidão, forneceu cantárida a prostitutas a fim de sorver melhor suas matérias fecais. Sade logo foi visto como um caso clínico pela alta sociedade da época: um novo Gilles de Rais, um ogro, um estranho inventor de unguentos. Após ter seduzido a irmã de sua esposa, Anne-Prospère de Launay, cônega de seu estado, foi considerado incestuoso.

A cunhada festejava com deleite as práticas em que Sade a iniciara. Quanto a Renée-Pélagie, foi, durante alguns anos, cúmplice do marido, aceitando porém com repulsa a sodomia que este lhe infligia e assistindo, impotente, a seus atos de devassidão com criados adolescentes, meninas e meninos. Condenado à morte por crime, blasfêmia, sodomia e envenenamento, Sade foi preso a pedido de sua sogra, a princípio no torreão de Vincennes, em 1777, depois na Bastilha em 1784. Ali viveu corretamente, durante cinco anos, cercado por uma biblioteca de 600 volumes.

Foi durante esse período que incorreu na "inconveniência maior". Obrigado a renunciar às suas passagens ao ato e a praticar um mero onanismo furioso, sofrendo de hemorroidas, de um início de obesidade e de uma progressiva vista cansada, ainda assim aproveitou-se do confinamento para conquistar, na intimidade de um violento confronto consigo mesmo, a mais elevada das liberdades, a única à qual pôde aspirar: a liberdade de dizer tudo — logo, de escrever tudo. Ao longo dessa prova iniciática, marcada por uma longa série de recriminações em relação aos outros, passou da abjeção à sublimação, da barbárie pulsional à elaboração de uma retórica da sexualidade. Em suma, passou do status de perverso sexual ao de teórico das perversões humanas. Consciente de ter-se tornado autor de uma obra inaceitável para a sociedade, redigiu Os 120 dias de Sodoma tendo o cuidado de copiar seu manuscrito em minúsculos papeizinhos enrolados a fim de melhor dissimulá-los. "Escrita, a merda não tem cheiro", assinala Barthes. "Sade pode inundar suas parceiras com ela, não recebemos nenhum eflúvio, apenas a marca abstrata de um desconforto."

Julgado louco por haver berrado de sua cela que estavam degolando prisioneiros no interior da fortaleza, Sade foi transferido para o hospício de Charenton em 2 de julho de 1789. Doze dias mais tarde, sua cela foi saqueada e os preciosos rolos desapareceram. Sade nunca mais os veria. Recolhidos por uma família oriunda da nobreza, permaneceram com ela durante três gerações antes de serem vendidos a um colecionador alemão que os guardou numa caixa. Publicado pela primeira vez em 1904, pelo psiquiatra e sexólogo alemão Iwan Bloch, ele próprio autor de uma biografia do marquês, o manuscrito dessa obra única no gênero, por sua força transgressiva, saiu da Alemanha em 1929. Foi no mês de janeiro desse ano, com efeito, que o escritor e médico Maurice Heine, pioneiro nos estudos sadianos, viajou até Berlim a fim de repatriá-lo para a França.

Em 1790, após a abolição das lettres de cachet, Sade pôde sair do hospício de Charenton justamente no momento em que sua esposa tomava a decisão de se divorciar. O espetáculo da Revolução provocara nela uma curiosa conversão. Assim como se curvara, contra as ordens maternas, às exigências de um esposo sacrílego que desafiava a lei dos homens e profanava a Igreja, da mesma forma o rechaçou quando foram abolidas as leis sobre a blasfêmia e a sodomia. E, diante das igrejas saqueadas, viu-o como a encarnação do mal absoluto, que, a seus olhos, não passava mais senão do vetor sangrento de uma grande pilhagem dos valores cristãos: um real incontornável.

De sua parte, louvando essa Revolução que pusera fim a seu confinamento, Sade declarava-se por toda parte homem de letras, assinando com um pseudônimo obras teatrais medíocres, justamente quando escrevia, no mais absoluto segredo, alguns de seus textos mais subversivos. Assim como a Revolução metamorfoseara o curso da vida de Renée-Pélagie, da mesma forma cavava um novo fosso na relação de Sade com a Lei.

Seja como for, graças à Revolução, o marquês conseguiu dissociar-se oficialmente da parte obscura de si mesmo, embora torpedeando, com suas obras clandestinas, os ideais de uma sociedade cujas estruturas já se achavam fortemente abaladas. Levou então uma vida oposta à que levara sob o Ancien Régime.

Foi com uma atriz de origem modesta, Marie Constance Quesnet, que esse grande predador libertino, outrora tão violento, transformou-se num amante, se não virtuoso, pelo menos quase fiel, mas também num pai. Ao passo que não dava a mínima para filhos legítimos, aos quais amaldiçoará incansavelmente, cuidou muito bem, anos a fio, do filho de sua amante, zelando entretanto para mantê-los a ambos na mais perfeita ignorância das obras que publicava sob pseudônimo — em especial Justine ou Os infortúnios da virtude, primeiro fascículo da interminável saga de duas irmãs (Justine e Juliette), uma virtuosa e condenada ao infortúnio, a outra lasciva e fadada à prosperidade.

Em setembro de 1792, na seção de Piques, apresentou-se como "cidadão Sade". Sonharia ele talvez com uma Revolução que não traísse a Revolução e que tivesse como divisa: "Francês, mais um esforço..."? Ou aspiraria talvez, sem acreditar nisso, à instauração de uma sociedade perversa que adotaria como imperativo categórico a lei do crime, do incesto e da sodomia? Em todo caso, foi possivelmente esta a razão pela qual não buscaria, no cerne da tormenta, identificar-se com uma qualquer nova ordem do mundo. Apenas o instante presente parecia detê-lo, tal como um diamante suspenso no vazio da Lei abolida.

Príncipe dos perversos, o ci-devant marquês desempenha à perfeição os papéis que ele próprio se atribui à medida que se desdobram aos seus olhos as múltiplas facetas do grande teatro da Revolução. Da mesma forma, sente-se impossibilitado de ocupar um lugar no seio de uma facção, um grupo, um vínculo:

Sou jacobita, odeio-os mortalmente, adoro o rei, mas detesto os antigos abusos; amo uma infinidade de artigos na Constituição, outros me revoltam, quero que devolvam à nobreza seu lustro porque de nada adianta lho confiscar; quero que o rei seja o chefe da nação ... Que sou agora? Aristocrata ou democrata? Digam-me por favor, pois da minha parte não entendo nada.

Como cidadão, salvou a vida dos sogros, a quem não obstante odiava, quando estes haviam sido condenados à prisão:

"São meus maiores inimigos, vagabundos, celerados, mas sinto pena", escreve. Na realidade, aquele que, em seus livros, preconizava suplícios e assassinatos de todo tipo, com a condição de que fossem realizados como outros tantos atos naturais emanados de uma pulsão soberana, tinha horror, repito, à ideia em si de uma possível institucionalização do crime. A visão do cadafalso fazia-o vomitar, e o espetáculo dos corpos decapitados mergulhava-o num abismo de terror. Sade, teórico das perversões sexuais mais sofisticadas, jamais suportou a ideia de que seu imaginário bárbaro pudesse se confrontar com o real de um acontecimento que, por sua própria selvageria — a do Grande Terror —, ameaçasse exorcizá-lo, até mesmo aniquilá-lo. Quando Maria Antonieta foi executada, após ter sido acusada de incesto e práticas sexuais lascivas, ele se identificou com o destino da rainha deposta, cheio de compaixão pelas humilhações por ela sofridas.

O momento mais trágico desse embate impossível entre o universo sadiano e a realidade da aventura revolucionária produz-se na hora da descristianização. Proferindo um ateísmo radical, Sade, usando um gorro vermelho, celebra o acontecimento:

"E como a tirania não apoiaria a superstição? Ambas alimentadas no mesmo berço, ambas filhas do fanatismo, ambas servidas por essas criaturas inúteis chamadas padre no templo e monarca no trono, deviam ambas ter as mesmas bases e ser protegidas."

Menos de uma semana depois dessa imprecação contra as "sagradas ninharias", Robespierre põe fim à campanha anti-cristã: "Aquele que quer impedir a missa, disse ele, é mais fanático que aquele que a oficia. Há homens que querem ir mais longe, que sob o pretexto de destruir a superstição querem transformar o próprio ateísmo numa espécie de religião ... Se Deus não existisse, teríamos que inventá-lo."

Condenado sob o Ancien Régime por crimes — sodomia e blasfêmia — que haviam sido abolidos pela nova Constituição, Sade foi condenado à prisão por ateísmo e moderantismo, depois encarcerado numa ex-casa de tolerância. Durante três semanas, na falta de lugar, dormiu nas latrinas. O mau cheiro lhe era insuportável. E, não obstante, em seus escritos e em sua vida pregressa, Sade havia sido o iniciador e o propagandista de um verdadeiro culto do poder olfativo dos excrementos. Nesse aspecto, aliás, embora se pretendesse servo do Iluminismo, permanecia apegado àquele universo arcaico do fedor que tanto fascinava os libertinos e arrepiava a burguesia, desejosa de instituir os princípios de um novo higienismo. De toda forma, pela maneira como ritualizara ao extremo práticas de defecação e ingestão de toletes, soubera encenar, na língua do Iluminismo, a face mais negra de uma pedagogia do lixo e da imundície, cujos vestígios encontraremos tanto no discurso dos sexólogos quanto no dos adeptos do nazismo.

Foi enfim em razão de seu ateísmo, e porque era suspeito de ser autor de Justine, que Sade foi condenado à morte em março de 1794, não sem haver tentado inutilmente reafirmar sua fidelidade à nação. Todavia, conseguiu ser albergado na Maison Coignard, em meio aos loucos e ricos aristocratas que, mediante dinheiro, encontravam ali um refúgio para escapar à guilhotina. Todas as noites, por ordens da Convenção, guardas despejavam no jardim dessa casa os corpos ensanguentados dos que não haviam conseguido escapar à decapitação. Em vez de se deliciar com esse espetáculo, como os personagens de seu livro, Sade ficou horrorizado. A queda de Robespierre permitiu-lhe voltar à liberdade.

Contudo, nenhum regime podia tolerar a presença de tal homem no seio da sociedade civil. E, como seus atos continuavam a escapar ao alcance da Lei, foi preciso detectar não somente no homem Sade, mas também em sua obra, o vício que permitisse confiná-lo sob a acusação de ser louco. Não haviam encontrado em seu quarto "um instrumento enorme, que ele fabricara com cera e do qual ele próprio se servia, de maneira que o instrumento conservara vestígios de sua introdução culpada"? Como não ver que aquele objeto devia ser posto em relação com o universo romanesco de Justine, "produção monstruosa, coleção horrível de crueldades inverossímeis"? Não precisava tanto para um veredicto, não de blasfêmia, devassidão, sodomia ou masturbação — que, lembremos, não eram mais consideradas crimes —, mas de "demência libertina".

Em 1803 teve início então o longo périplo que levaria Sade, um ano mais tarde e pelo resto da vida, ao asilo de Charenton.

Nessa data começava uma terrível batalha em torno da definição da loucura e de sua possível cura, a qual viria a opor, durante todo o século, juristas e psiquiatras — somada, no cerne do processo de medicalização das grandes paixões humanas que se esboçava, à questão de saber o que aconteceria com a natureza da perversão num mundo em que os perversos, tratados como doentes, não pudessem mais desafiar a Deus, tendo como horizonte apenas o recurso à ciência.

É perfeitamente compreensível a preocupação da burguesia em consolidar seu poder sob o Império relegando Sade entre os loucos a fim de reduzir sua obra ao silêncio. Mas isso em absoluto nos exime do debate sobre o homem Sade: seria um alienado, mesmo gozando claramente de todas as suas faculdades mentais?

Diretor do asilo, ex-montagnard e ex-padre, François Simonet de Coulmier era um dos artífices da nova psiquiatria pineliana, baseada no tratamento moral e na humanização dos loucos. Desde sua nomeação em 1797 como auxiliar do médico-chefe Jean-Baptiste Joseph Gastaldy, que partilhava suas orientações, empenhava toda a sua energia em reformar as condições de internação dos doentes, privilegiando as atividades do espírito em detrimento das intrusões corporais: dietas, sangrias, laxantes.

Intimado pelo ministro de sua área a impor uma rigorosa vigilância a Sade, concedeu a seu ilustre hóspede, ao contrário, meios de viver corretamente, de escrever e dedicar-se à sua paixão pelo teatro. Mais que isso, autorizou-o a ter Constance a seu lado. Dessa forma, negou-se a classificar Sade na categoria dos alienados, ao mesmo tempo em que o incitava a se tornar por sua vez instigador de uma teatralização de suas próprias pulsões. Provavelmente tinha consciência do estado mental em que se achava o marquês, convencido de ser vítima de uma grande perseguição. Mas julgava preferível mobilizar seus talentos em prol da comunidade asilar em vez de fazer dele, na vida cotidiana, o equivalente do que ele persistia em ameaçar tornar-se: um Dolmancé ou um Bressac.

Aprovado com louvor na arte da clivagem, transformado em ator mártir, em diretor teatral e enfermeiro, Sade não se parecia em nada com os personagens de seus romances. Da mesma forma, continuava a negar ser o autor dos textos licenciosos, cuja redação não obstante empreendia, apesar das incessantes averiguações policiais de que era objeto. E, à medida que renegava a paternidade de suas outras obras, julgadas infames — sobretudo a saga de Justine e Juliette —, apresentava-se como dramaturgo mais virtuoso de seu tempo, escrevendo diversos espetáculos encenados no hospício por loucos e atores.

Sade atraía multidões para e contra si, desempenhando alternadamente, em seu foro íntimo e em sua dança com os loucos, papel de Juliette e o de Justine. Do fundo de sua reclusão, parodiava a nova ordem do mundo, dividido entre uma aspiração aos prazeres e a vontade de normalizar os infames, os perversos e anormais. E era essa a razão pela qual os representantes da ciência médica burguesa desconfiavam da influência nefasta que aquele predador de uma outra época ainda corria o risco de exercer sobre a sociedade de sua época: "A libertinagem do homem pode se saciar com os internos, o problema é suas ideias poderem corrompe-los moralmente."

O sucesso obtido por Sade com seu teatro dos loucos não podia, portanto, senão desagradar a todos os que o consideravam acima de tudo um criminoso. E foi este o motivo pelo qual, ao suceder Castaldy em 1805, Antoine Royer-Collard quis imediatamente dar cabo daquela experiência. Ex-partidário dos Bourbon, esse médico medíocre via Sade como um irrecuperável pervertedor.

Seu lugar não é no hospital, mas num presídio ou numa fortaleza. Sua loucura é perverter. A sociedade não pode ter esperanças de tratá-lo, deve submetê-lo à mais severa confinação. A liberdade de que ele goza em Charenton é demasiado grande. Pode comunicar-se com um número bastante grande de pessoas dos dois sexos .... Prega sua horrível doutrina a alguns; empresta seus livros a outros.

A estocada foi dada pelos próprios doentes, que, sem nenhum tipo de recurso, recusaram os benefícios terapêuticos daquela experiência teatral. Desacreditado pelos alienados, Sade permaneceu em Charenton e teve um último caso com a filha de uma enfermeira a quem ele iniciou na sodomia, ao mesmo tempo em que lhe ensinava a ler e escrever. Após sua morte, o médico do hospício, adepto das teorias frenológicas de Franz Josef Gall, afirmou que o crânio de Sade era em todos os aspectos semelhante ao de um padre da Igreja. Mas essa tese foi em seguida refutada pelo principal discípulo austríaco de Gall, que explicou, ao contrário, que a organização cerebral do marquês atestava seus vícios, sua depravação e seu ódio...

Que a loucura de Sade tenha sido uma "loucura de perverter", isso não deixa mais dúvida. Porém, ao pronunciar esse diagnóstico, Royer-Collard fazia de Sade um caso de um novo gênero. Se o marquês não era um alienado de verdade, e se devia ser aprisionado numa fortaleza em vez de tratado num hospício, por que então falar de loucura? Percebemos aqui o problema que um caso desses colocava para a psiquiatria nascente: ou Sade era um alienado e devia ser tratado como os outros alienados, ou era um criminoso e devia ir para a prisão, ou não passava de um gênio do mal, autor de uma obra de uma transgressão inaudita, e era preciso deixá-lo livre para escrever e agir como lhe aprouvesse, o que era naturalmente política e moralmente impossível a despeito das novas leis de 1810.

Logo, é efetivamente porque não era nem louco, nem criminoso, nem palatável pela sociedade que Sade foi considerado um "caso" de novo gênero, isto é, um perverso — louco moral, semilouco, louco lúcido —, segundo a nova terminologia psiquiátrica. "Era inquestionavelmente um homem perverso teoricamente, mas em suma não era louco", dirá o ex-membro da Convenção Marc Antoine Baudot.

Convinha julgá-lo por suas obras. Havia nelas germe de depravação, mas não de loucura; um trabalho desse tipo supunha um cérebro bem organizado, e a própria composição de seus livros exigia muita pesquisa sobre literatura antiga e moderna, tendo como objetivo demonstrar que as maiores depravações haviam sido autorizadas pelos gregos e romanos.

A partir do primeiro quartel do século XIX, o nome de Sade repercutiu como um paradigma no cerne mesmo da definição de perversão, tanto de sua estrutura quanto de suas manifestações sexuais; uma definição que reportava o sujeito à finitude de um corpo fadado à morte e ao imaginário de uma psique emoldurada pelo real do gozo.

O que, a propósito, é atestado pela criação do neologismo "sadismo" em 1838. A palavra servirá de conceito primordial para os sexólogos, que lhe irão justapor uma outra, "masoquismo" — antes de Freud, sem ter lido a obra de Sade, atribuir a esse binômio uma dimensão pulsional de caráter universal, bem além de qualquer referência a uma simples prática sexual: gozar com o sofrimento que nos infligimos infligindo-o ao outro e recebendo-o do outro. Quanto a Gilles Deleuze, grande leitor de Sade, cindirá os dois termos reunidos por Freud para fazer do masoquismo um mundo à parte, escapando a toda simbolização, um mundo repleto de horrores, castigos e contratos firmados entre carrascos e vítimas.

Mas como não ver que esse mundo de Sacher-Masoch já estava presente na literatura sadiana, com uma força transgressiva muito maior?

Transformado num substantivo injurioso, o nome maldito de Sade igualmente serviria, ao longo de todo o século XIX, de referência para um princípio de estigmatização obscena da própria identidade do inimigo: inimigo de si, do outro, da nação. Assim, quando Barras, o mais corrupto dos homens de seu tempo, quis achincalhar a gloriosa imagem de um Napoleão heróico, chamou-o de "Sade da guerra e da política".

Impedido pela lei de se tornar um criminoso — e incessantemente atirado à prisão pelos diferentes poderes que então se sucederam —, Sade escreveu portanto uma obra inclassificável. Se não tivesse passado na prisão um terço de sua vida, provavelmente teria cumprido o itinerário de um sodomita, estuprador de prostitutas, sedutor de adolescentes, carrasco dos outros e vítima de si mesmo. Assim, podemos sugerir que ele só pôde criar a obra mais indefinível de toda a história da literatura — "inconveniência primordial", "Evangelho do mal", "monolito abissal", "subversão da divisão entre vício e virtude" — porque se confrontou em vida com três regimes políticos, da Monarquia ao Império, que fizeram dele e dessa obra a parte mais obscura do que eles próprios estavam em vias de realizar.

Portanto, é compreensível que Sade tenha sido visto pela posteridade ora como um precursor da sexologia, ora como um herdeiro do satanismo ou da tradição mística — o "divino marquês" —, ora, finalmente, como ancestral da abjeção nazista. Encarnação de todas as figuras possíveis da perversão, ele nunca cessará, após ter desafiado os reis, insultado a Deus e invertido a Lei, de ameaçar, a título póstumo e de maneira espectral, todos os representantes da biocracia em sua vã pretensão de querer domesticar o gozo do mal.