Desde que foi escrito em uma cela na Bastilha, manuscrito de 'Os 120 dias de Sodoma' passou por várias mãos até ir parar na Suíça
PARIS — "Os 120 dias de Sodoma", do Marquês de Sade, é uma das obras mais perversas da literatura do século XVIII. O livro conta a história de quatro ricos libertinos que se trancam em um longínquo castelo medieval com 46 vítimas (incluindo oito meninos e oito meninas, com idades entre 12 e 15 anos). Os homens são auxiliados por quatro prostitutas que excitam os anfitriões contando suas bizarras e (romantizadas) experiências.
O trabalho descreve orgias e atos de abuso — não apenas sexuais — incluindo pedofilia, necrofilia, incesto, tortura, estupro, assassinato, infanticídio, violentos atos sexuais anais e orais além do uso de urina e fezes como forma de humilhação e punição. Sade classificava a obra como "o conto mais impuro já escrito desde que o mundo começou".
Não há nada de erótico nele. Mesmo Bruno Racine, diretor da Biblioteca Nacional da França, chama o livro de "depravado". Mas isso não o impediu de negociar longamente para comprar o manuscrito de Sade.
Racine convenceu o Ministério da Cultura francês da importância da obra, argumentando que se trata de um tesouro nacional que precisa ser preservado na bilbioteca.
E ele está disposto a pagar mais de US$ 5 milhões para adquiri-lo. "Esse documento é o trabalho mais radical, extremo e atroz de Sade", disse. "Mas não fazemos nenhum julgamento moral em relação a isso.
Um rascunho desconexo e inacabado, "120 dias de Sodoma" já foi elogiado e vilanizado. Simone de Beauvoir o defendeu como uma importante contribuição ao lado obscuro da humanidade em seu ensaio "Devemos queimar Sade?". A feminista americana Andrea Dworkin o considera um cono vil escrito por um pornógrafo que odiava mulheres. Num filme de 1975, Pier Paolo Pasolini ambienta a história em uma imaginária república italiana, como forma de condenar o regime fascista de Mussolini.
Sade escreveu o rascunho em 37 dias em 1785, na Bastilha, onde estava preso por atacar mulheres e crianças. Ele escreveu em letras pequenas, nos dois lados de um pedaço de papel, cujas folhas juntou em um rolo de 11 metros de comprimento. Temendo que seu trabalho pudesse ser confiscado, escondeu o rolo em uma fenda na cela.
Dias antes da tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, Sade foi transferido durante a noite para um manicômio. Ele escreveu que "chorou lágrimas de sangue" sobre os manuscritos perdidos e foi enterrado em 1814 sem saber seu paradeiro. Mas a obra foi recuperada, vendida, revendida e então publicada pela primeira vez por um médico alemão, numa versão cheia de erros, em 1904.
Em 1929, o visconde Charles de Noailles, cuja esposa, Marie-Laure, era uma descendente direta de Sade, comprou o manuscrito. O casal, rico e apaixonado pelas artes, passou a obra para sua filha, Natalie, que o manteve guardado em uma gaveta, na propriedade da família em Fontainebleau. Em algumas ocasiões, ela abria o rolo e o mostrava para convidados, entre eles o escritor italiano Italo Calvino.
"Minha mãe me mostrou o manuscrito quando eu era menino", disse Carlo Perrone, um jornalista italiano que é filho de Natalie de Noailles. "Eu lembro que a escrita era muito pequena e que não havia correções. Isso dava a impressão de que o papel era um recurso escasso e precioso para ele, que ele precisava preencher todos os espaços."
Natalie de Noailles eventualmente confiou tanto essa obra quanto o manuscrito do balé "Les Noces", de Stravinsky, a um amigo, o editor Jean Grouet, que se mostrou um vigarista. Em 1982 ele contrabandeou os papeis para a Suíça, vendendo-os para Gerard Nordmann, colecionador de arte erótica, por cerca de US$ 60 mil. Natalie de Noailles abriu um processo e, após uma longa batalha jurídica, a maior corte francesa decidiu, em 1990, que a obra havia sido roubada e deveria ser devolvida. (A família conseguiu recuperar o manuscrito de Stravinsky, que permanece na França.)
Como a Suíça ainda não assinou a convenção da Unesco exigindo a restituição de objetos culturais roubados, Natalie de Noailles se viu obrigada a abrir um novo processo naquela país. Em1998, a justiça suíça decidiu a favor de Nordmann, argumentando que ele comprou o manuscrito de boa fé.
Desde então, ele é mantido em uma fundação cultural no país. Mas quando, em janeiro último, um herdeiro de Nordmann se ofereceu para vender a obra para um colecionador francês, Perrone interveio.
"Qualquer um que pretenda comprar esse manuscrito na França precisa obter meu consentimento", disse em uma entrevista. "Minha mãe desejava que algum dia a obra fosse entregue para a Biblioteca Nacional, o que também é o meu desejo. É um documento de importância histórica, um pedaço da história francesa".
Aí entra Racine. Desde que assumiu o cargo de diretor da Biblioteca Nacional, em 2007, ele vem tentando classificar manuscritos importantes como "tesouros nacionais", para adquiri-los para a instituição. Entre outros, ele comprou as memórias de Casanova com US$ 9,6 milhões de um doador anônimo, os arquivos do filósofo francês Michel Foucault e do escritor e cineasta Guy Debord (evitando que eles deixassem o país e fossem para Yale, nos EUA).
"Não conheço nenhum diretor de biblioteca do mundo que esteja executando uma estratégia de aquisição tão brilhante quanto Bruno Racine", disse Paul Le Clerc, ex-diretor da Biblioteca Pública de Nova York e diretor dos programas europeus da Universidade de Columbia.
No momento, Racine negocia com Perrone e os herdeiros de Nordmann para comprar o manuscrito de Sade, dando uma parte dos lucros para cada um. O preço estimado de venda — mais de US$ 5 milhões — será levantado entre doadores privados.
O objetivo do diretor é colocar o manuscrito em exposição, junto com outros trabalhos de Sade, durante a comemoração dos 200 anos de morte do escritor, em 2014. "É um trabalho único, excepcional e é um milagre que ele tenha sobrevivido. É parte de nossa herança cultural. Gostemos dele ou não, pertence à Biblioteca Nacional", conclui.