(Bataille, 1957: 94)
Se sadismo e masoquismo são termos consagrados no estudo da perversão, há que se reconhecer que eles se originaram de obras literárias. Mas como aconteceu essa transposição da literatura para a psicopatologia? Inicialmente, é preciso distinguir a transposição da literatura por Krafft-Ebing (1840-1902) e a apropriação psicanalítica a partir dessa primeira transposição.
Krafft-Ebing, autor da obra Psychopathia sexualis ([1886] 1895), é um representante da psicopatologia descritiva que demarca as semelhanças e diferenças entre fenômenos. A leitura que Krafft-Ebing faz da obra literária pode ser interpretada como uma transformação de fantasias em fatos. Se, em um primeiro momento, podemos colocar objeções a essa leitura, caracterizando-a como uma psicopatologização da obra de arte, em um segundo momento podemos observar que há um reconhecimento da fantasia na medida em que esta é tomada em comparação com a clínica. Não são mais tratadas como fantasias de um escritor, mas como fatos clínicos. Tomar a fantasia como fato clínico é positivar a fantasia, mas é também um reconhecimento de sua existência.
A apropriação psicanalítica dos termos sadismo e masoquismo consistiu na elaboração do conceito metapsicológico de pulsão sadomasoquista. No estudo do fenômeno dos pares de opostos sadismo e masoquismo, Freud mostrou que há um reviramento tanto da pulsão como da fantasia, ou seja, a fantasia sádica se torna fantasia masoquista; assim também a pulsão sádica se torna masoquista.
Essa abordagem de reviramento pulsional no sadomasoquismo não é discrepante com um dos relatos que o próprio Krafft-Ebing apresenta em Psychopathia sexualis ([1886] 1895). Nessa obra, as descrições recebem o nome de observação e são numeradas de 1 a 193 ao longo das 592 páginas da tradução francesa. Na profusão de registros e relatos, encontramos a observação de número 49, na forma de depoimento exaustivo de comportamentos e sentimentos do sujeito que se apresenta como masoquista:
Eu sei que nunca fui batido nas nádegas; que minhas ideias masoquistas se manifestaram desde a minha primeira juventude e que tive semelhantes ideias desde o momento em que comecei a pensar [...]. Lendo os romances de Sacher-Masoch, fui tocado pela observação de que, no masoquista, os sentimentos sádicos se misturam de tempos em tempos com os outros sentimentos. Descobri em mim sentimentos esporádicos de sadismo. Devo, entretanto, observar que os sentimentos sadistas não são tão marcados como os sentimentos masoquistas e que não se manifestam senão raramente e de modo acessório, eles não saem do quadro dos sentimentos abstratos e, sobretudo, não se revestem da forma das representações concretas e coerentes. De todo modo, o efeito sobre a libido é o mesmo nos dois casos (Krafft-Ebing, [1886] 1895: 144; tradução nossa).
Esse relato nos ensina que é importante considerar o movimento pulsional para abordar o estudo das perversões. Como conceber o sadismo e o masoquismo como diferentes perversões, se há uma pulsão sadomasoquista que se desdobra em três tempos?
A FANTASIA
O material com o qual a psicanálise trabalha, além do sintoma, é a fantasia. A fantasia não é um sintoma e não pode ser dissolvida ou curada, mas sim atravessada, pois ela é uma construção que origina um sujeito e, uma vez encontrada na literatura, pode ser analisada por Freud através de comparações com a clínica psicanalítica. No texto "Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais", Freud ([1919] 1976) faz uma contribuição aos estudos sobre a perversão ao mostrar que esta tem origem em uma fantasia infantil, que poderá ser transformada pelo recalque ou pela sublimação.
Freud (1919e) desconstrói a fantasia "uma criança é espancada" em três fases ou três fantasias:
1) O meu pai está batendo na criança. Fantasia sádica cujo significado é incestuoso: o meu pai não ama essa outra criança, ama apenas a mim.
2) Estou sendo espancada pelo meu pai. Fantasia masoquista para a qual convergem o sentimento de culpa e o amor sexual relacionados à primeira fantasia.
3) Uma criança é espancada. Essa fantasia é sádica na forma, mas a satisfação derivada é masoquista (Freud, [1919] 1976: 232-238).
A fantasia "uma criança é espancada" é falada no tempo presente e se desdobra em três fases caracterizadas pelas flexões das pessoas gramaticais, a saber, a terceira pessoa, a primeira pessoa e, na terceira fase, a flexão é de terceira pessoa, mas o sujeito é indeterminado. Na terceira fase, a criança espancada é do sexo masculino. A fantasia masoquista feminina da segunda fase fica inconsciente e é transformada em fantasia sádica na terceira fase, quando se torna consciente (é relatada).
No trabalho de 1915, "As pulsões e os destinos da pulsão", Freud aborda o sadismo e o masoquismo como uma pulsão. Ambos os artigos têm em comum o destaque dado por Freud às flexões gramaticais. No artigo de 1919 sobre o masoquismo, está em questão a flexão do pronome pessoal e a fantasia consolida-se em torno do sujeito indeterminado. E, no artigo de 1915 sobre as pulsões, mais do que a inversão da voz ativa em passiva está a emergência de um terceiro. Na pulsão escopofílica: olhar um órgão do próprio corpo, olhar outro e se fazer olhar (por um terceiro). No sadismo e masoquismo: o sujeito violenta outro, o sujeito assume o lugar do objeto violentado e outra pessoa ocupa o lugar do sujeito que violenta. O que há de comum em ambos os trabalhos é que um terceiro, um sujeito indeterminado, ocupará o lugar que antes era do sujeito.
A TOPOLOGIA DAS PULSÕES
É necessária a noção de circuito para compreender o conceito de pulsão, uma vez que os destinos da pulsão se dão através de movimentos como "transformação da pulsão em seu contrário" e "redirecionamento da pulsão contra a própria pessoa". A primeira consiste na alteração da meta sem alteração do objeto, o segundo, na alteração do objeto sem alteração da meta. Lacan ([1964] 1985) considera notável que, para ilustrar o reviramento (Verkehrung) pulsional, Freud tenha escolhido a Schaulust, a vontade de olhar, e o que ele não pôde designar de outro modo senão pela colagem de dois termos, o sadomasoquismo.
Nessas duas pulsões parciais, mesmo que se altere o objeto, não se altera a meta: o sadismo se transforma em um sadismo voltado contra o próprio eu (masoquismo); o masoquista compartilha o gozo (mitgeniesst) implicado na agressão contra a sua pessoa.
Freud ([1915] 2004) mostra que, em se tratando da alteração do objeto: o masoquista compartilha o gozo (mitgeniesst) implicado na agressão contra a sua própria pessoa e o exibicionista se compraz com seu próprio desnudamento, pois essencial nesse processo é a troca do objeto sem alteração da meta. Em se tratando da alteração da meta, provocar dor se transforma em sentir dor. O objeto continua sendo o outro, mas o sujeito se identifica com o objeto para que a meta seja alterada sem alterar o objeto.
Quando apresenta o destino "redirecionamento contra a própria pessoa", Freud destaca que o essencial desse processo é a troca de objeto sem alteração de meta. Assim, o masoquismo é um sadismo voltado contra o próprio Eu e a exibição inclui a contemplação do próprio corpo.
Se Freud chamou o sadismo e masoquismo de pares de opostos, é porque são polos opostos no movimento pulsional. Cabe notar que, nesse movimento de vaivém pulsional, aos termos atividade e passividade não cabe um sentido psicológico, mas antes um sentido puramente gramatical, como observa Lacan ([1964] 1985). O vaivém é, então, gramatical.
Freud ([1915] 2004) assim define o par de opostos sadismo-masoquismo:
a) O sadismo consiste em violência, em exercício de poder contra outra pessoa tomada como objeto.
b) Esse objeto é deixado de lado e substituído agora pela própria pessoa. O redirecionamento contra a própria pessoa transforma, ao mesmo tempo, a meta pulsional ativa em passiva.
c) Novamente outra [fremde] pessoa é procurada como objeto, a qual, devido à transformação ocorrida na meta, tem então de assumir o papel de sujeito.
Freud ([1915] 2004) introduz, no masoquismo, um terceiro tempo no qual a satisfação ocorreria ainda pela via do sadismo original; nesse caso, o Eu passivo se transporta fantasisticamente a seu lugar anterior, o qual havia sido deixado ao encargo de outro [fremd] sujeito que agora o ocupa. Ou seja, a fantasia sádica é realizada, o circuito pulsional se fecha, mas quem ocupa a volta de fechamento desse circuito é um outro: um sujeito indeterminado.
Lacan ([1964] 1985) observa que é preciso distinguir a volta em circuito de uma pulsão do aparecimento de um novo sujeito no terceiro tempo: "Esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pôde fechar seu curso circular. É somente com sua aparição no nível do outro que pode ser realizado o que é da função da pulsão" (Lacan, [1964] 1985: 169).
Se a satisfação da pulsão é o gozo, não é o gozo nem de um sujeito ativo nem de um sujeito passivo, mas o gozo do Outro. Freud chama a esse outro sujeito que aparece no fechamento do circuito pulsional de fremd, que pode ser traduzido por alheio, desconhecido, forasteiro. Esse desconhecido pode ser representado pelo impessoal na gramática.
A perversão se sustenta em pulsões parciais e somente as pulsões sexuais, tanto nas suas finalidades quanto nos seus objetos, são suscetíveis de transformações. Lacan ([1964] 1985) observa que Freud apresenta uma "estrutura radical - na qual o sujeito ainda não está de modo algum colocado. Ao contrário, o que define a perversão é justamente o modo pelo qual o sujeito se coloca" (Lacan, [1964] 1985: 172).
É o caso do neurótico, que também se insere no circuito de pulsões parciais. Mas qual é a diferença? O neurótico não atinge o fecho desse circuito, ele se detém. Retomemos a construção freudiana do circuito da pulsão parcial sadomasoquista, quando Freud faz a seguinte observação:
Na neurose obsessivo-compulsiva, encontramos o redirecionamento contra a própria pessoa, sem fazer-se acompanhar da passividade perante outra pessoa. A transformação vai somente até a etapa b. A compulsão [sucht] de atormentar se transforma em autotormento, autopunição, mas não em masoquismo. O verbo na voz ativa não se transforma na voz passiva, mas na voz reflexiva média (Freud, [1915] 2004: 153).
O que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o vaivém em que ela se estrutura; parte alguma do percurso da pulsão pode ser separada de seu vaivém, de sua reversão fundamental, do caráter circular do percurso da pulsão. Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial e seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito (Lacan, [1964] 1985: 170).
O que se passa no voyeurismo? O circuito da pulsão se fecha quando o sujeito é surpreendido como olhar escondido. O que se olha é o que não se pode ver. Se, graças à introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece, ela só se completa em sua forma de retorno. "Não é apenas a vítima que está envolvida no exibicionismo, mas é a vítima enquanto que referida a algum outro que a olha" (Lacan, [1964] 1985: 173).
De acordo com essa leitura, o masoquista se tornará um sujeito sádico no que o circuito acabado da pulsão terá feito entrar em jogo a ação do outro. É nesse sentido que a perversão e a sublimação se aproximam, pois, nesse circuito pulsional, a sublimação e a perversão fazem o circuito completo, atingindo o fecho e revelando que o que sustenta o desejo é a fantasia e não o objeto. O objeto é o que está na lacuna. Só no fecho do circuito pulsional emerge o gozo. O sujeito perceberá que seu desejo é vão contorno do gozo do outro. O sujeito é lacunar, e é nessa lacuna, representada como interior-exterior (dada a estrutura de um toro), que o sujeito instaura a função de um certo objeto enquanto objeto perdido. Mas, aqui, a perversão e a sublimação se afastarão.
Será no Seminário De um Outro ao outro que Lacan ([1968-1969] 2008) tratará da assimetria entre voyeurismo e exibicionismo e entre masoquismo e sadismo. No voyeurismo, ao ser convocada a olhar, a vítima termina o circuito. E, ao término do circuito, o que se realiza é o gozo do Outro. Essa assimetria se deve a que nenhuma pulsão é simétrica, e o que a torna assimétrica é que o objeto a é um suplemento. Ou seja, com os objetos olhar e voz, o sujeito perverso interroga o que falta no Outro e, ao mesmo tempo, busca repor, no Outro, esse objeto. Mas o Outro não apenas não demanda esse objeto a como também não o quer. Portanto, do ponto de vista do Outro, esse objeto é um suplemento. Além disso, há uma assimetria que é característica do objeto a enquanto impossibilidade de retorno narcísico, por conseguinte, como não-especular - enquanto que na sublimação há assimetria, mas não há dessubjetivação, pois se sabe que o objeto a é vazio. Na sublimação, afirma Lacan ([1968-1969] 2008), "o objeto a aparece assimétrico como na fórmula da fantasia: S barrado punção a" (Lacan, [1968-1969] 2008: 253).
Para tratar do impessoal ou dessubjetivado na perversão, vamos abordar as obras de Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895) e D. A. François, Marquês de Sade (1740-1814). Para tratar dessas obras literárias, tomamos como inspiração a pergunta de Deleuze ([1967] 1983): seriam Sacher-Masoch e o Marquês de Sade clínicos cujas descrições fundaram novos quadros clínicos ou renovaram entidades clínicas?
O IMPESSOAL EM A VÊNUS DAS PELES
A história de um homem e sua "Vênus" se abre com um sonho. Tal atmosfera onírica garantirá, ao longo do romance A Vênus das peles, de Sacher-Masoch, a fluidez necessária para as alternâncias dos duplos homem e mulher, senhora e escravo, deusa e mulher, escravo e homem. Alternância dialética que tem como pano de fundo outro duplo: de um lado, o homem moderno, cristão, cuja natureza foi dissociada de seu espírito e que deve pagar com penitência e culpa a cada vez que cede à sua carne; de outro, o ideal de prazer dos helenos, encarnado na figura mítica da Vênus, a quem o homem moderno só pode atribuir características demoníacas ou a quem deve temer como ao Deus cristão, tamanha a liberdade com que ela transita pelo natural e pelos seus prazeres.
Um excerto do primeiro diálogo entre os protagonistas do romance Wanda (a Vênus) e Severin (por vezes Gregor, o escravo) introduz, para o leitor, esses elementos:
Wanda: Na natureza existe só mesmo aquele amor dos tempos heroicos - quando se amavam os deuses e as deusas. Naquele tempo, seguia-se o desejo ao olhar, e o gozo ao desejo. Todo o resto é afetado, falseado. O cristianismo - e seu terrível emblema: a cruz - me é assustador. Traria para mim antes de tudo algo de estranho e inimigo da natureza de seus ímpetos isentos de qualquer culpa. A luta do espírito com o mundo dos sentidos é o evangelho dos modernos. Disso não quero tomar parte.
Severin: Pois sim, o seu lugar seria no Olimpo, madame. Mas nós, modernos, já não conseguimos suportar a serenidade antiga, pelo menos não, não o conseguimos no amor; a ideia de com outros partilhar uma mulher que fosse, uma Aspásia, nos arrepia, somos ciumentos como o é o nosso Deus (Sacher-Masoch, [1870] 2008: 41).
Esse jogo entre divinização e amor/sexo/prazer está embutido, enquanto significação, no que se pode chamar de uma configuração clínica masoquista do personagem Severin. No caso do masoquismo, temos uma categoria psicopatológica firmemente ancorada na literatura e sequer se pode estabelecer uma direção unilateral entre uma e outra. Desse modo, justifica-se que se pense em que medida os significantes relativos a entidades religiosas e míticas, tão marcantes no romance, se relacionam com alguns avanços conceituais e clínicos do masoquismo, tal como foram desenvolvidos na psicanálise de Lacan.
Sacher-Masoch concebeu sua obra em uma série de ciclos, sendo o principal deles aquele intitulado "O legado de Caim", do qual a obra A Vênus das peles é parte. Deleuze ([1967] 2009), em seu ensaio sobre o escritor, aponta, a respeito desse ciclo, questões que nos interessam:
O que significa a expressão "legado de Caim"? Pretende, primeiramente, dar conta da herança de crimes e sofrimentos que pesam sobre a humanidade. Mas a crueldade é apenas uma aparência sobre um fundo mais secreto: a frieza da natureza, a estepe, a imagem gélida da mãe, em que Caim descobre seu próprio destino. E o frio dessa mãe severa é, sobretudo, uma transmutação da crueldade da qual sairá o novo homem. Existe, então, um "signo" de Caim que mostra como se deve usar o "legado". De Caim a Cristo, é o mesmo signo que leva ao Homem na cruz, "sem amor sexual, sem propriedade, sem pátria, sem disputas, sem trabalho e que morre por vontade própria, personificando a ideia de humanidade (Deleuze, [1967] 2009: 12).
Se aceitarmos que tais elementos da obra de Masoch são indissociáveis do que clinicamente se chamará masoquismo, poderíamos perguntar: por que um masoquista pretenderia "dar conta da herança de crimes e sofrimentos que pesam sobre a humanidade?". Para Lacan ([1968-1969] 2008), o gozo designa aquilo que "se institui por sua evacuação do campo do Outro e, por isso mesmo, da posição do campo do Outro como lugar de fala" (Lacan, [1968-1969] 2008: 240). Nesse sentido, pode-se dizer que o objeto a funciona como "equivalente do gozo":
O lugar do Outro como esvaziado do gozo é não apenas um lugar desobstruído, um círculo calcinado, um espaço acessível ao jogo dos papéis, como é também algo que, por si só, estrutura-se pela incidência significante. É exatamente isso que introduz nele essa falta, essa barra, essa hiância, esse furo que pode distinguir-se do título do objeto a (Lacan, [1968-1969] 2008: 244).
Partindo disso, Lacan ([1968-1969] 2008) dirá que o perverso "é aquele que se consagra a tapar o buraco no Outro", "ele está do lado do fato de que o Outro existe. É um defensor da fé" e, por isso, uma espécie de "auxiliar singular de Deus" (Lacan, [1968-1969] 2008: 245). Nesse sentido, poderíamos responder à questão lançada dizendo que o masoquista assumiria a função de restituir o sofrimento/a crueldade ao Outro, ou seja, manter vivo o "legado de Caim".
Vejamos mais um diálogo entre Wanda e Severin para nos ajudar a pensar sobre essas questões conceituais:
- Mas Severin... - Wanda interviu contrariada -, o senhor me julga capaz de ser essa mulher que maltrata um homem, um homem que tanto me ama, como o senhor?
- E por que não, se é por isso que a adoro tanto? Só se pode verdadeiramente amar o que está acima de nós, o que nos oprime pela beleza, pelo temperamento, pelo espírito, pela força de vontade, e se torna nossa déspota.
- Então o que aos outros afasta é justo o que o atrai?
- Assim o é. Nisto sou bem eu mesmo (Sacher-Masoch, [1870] 2008: 55).
Nesse mesmo diálogo ele se compara aos mártires. Mais adiante acrescenta que as peles, que ele pede que ela vista, o remetem ao poder e à beleza dos monarcas, que as usaram com esse intuito desde os tempos mais antigos. Ora, ele goza ao restituir no Outro a função da voz, da autoridade, do poder. É preciso amar aquilo que está acima de nós e garantir sua autoridade, daí Lacan denominar o masoquista de auxiliar de Deus.
O intento é alçar tanto o parceiro como a si mesmo a um estatuto sagrado. Para o masoquista, ser um mártir é ser sobrenatural. Sua parceira tem um "corpo marmóreo", a frieza de uma estátua, como a da imagem de uma deusa morta. Para o gozo do masoquista, é preciso mantê-la morta. Morta, mas divinizada (na imagem fria, de pedra, de uma deusa, como aparece em A Vênus das peles), divinizada porque viva no simbólico. Não seria aquilo que falta no Outro justamente o que nos insere na linguagem? No mito freudiano do surgimento da civilização (Freud, [1912] 1976), no momento em que se cria uma espécie de "degrau" com relação ao natural puro, há um morto que precisa existir simbolicamente no totem. Nosso personagem, Severin, diz:
Eu via nas mulheres a personificação da natureza, a Ísis, e no homem o seu sacerdote, seu escravo, e a via, a mulher, cruel para com ele, como a natureza, que afasta de si o que já a serviu se já não pode fazê-lo mais, ao passo que para ele os maus-tratos dela advindos, mesmo a morte perpetrada pela mulher, converte-se em suprema delícia (Sacher-Masoch, [1870] 2008: 62).
Vemos aí a natureza bela e má, ao mesmo tempo, sagrada e cruel. Que algo ou alguém morra para que isso se mantenha assim, como vimos, não é um problema para o masoquista. Severin, de certa forma, atualizará os passos de Cristo, oferecendo-se em sacrifício para resguardar o poder de sua deusa, que, embora de nome Vênus, aparece com o mesmo estatuto do Deus único dos cristãos.
O impessoal aparece, neste romance de Masoch, como um além da pessoa. Há uma ordem instituída por contrato e essa ordem ganha aspectos transcendentais. A dessubjetivação ou impessoalidade é efeito.
O IMPESSOAL NA UTOPIA SADIANA
Lacan identifica em Sade um "sistema de sociedade idealmente utópico" fundado pela lei do gozo (Lacan, [1959-1960] 1997: 246). Através de Os 120 dias de Sodoma e A filosofia na alcova, analisemos então o que poderia ser a utopia sadiana a partir da perspectiva estrutural de Lacan. Nesta, encontramos uma lógica que explicita a falta no universo de discurso representada pelo objeto a. Em De um Outro ao outro ([1968-1969] 2008), ele deixa de ser um objeto destacado do corpo para ser o conceito que nomeia a falta de saber que estrutura o campo do discurso. Essa falta no Outro, objeto a, é um espaço impreenchível, uma necessidade estrutural lógica que Lacan atribui ao universo de discurso através do paradoxo de Russell. A verdade em Lacan é caracterizada de forma negativa, ou seja, ela se apresenta por uma ausência de saber no Outro. Se o universo de discurso fosse considerado totalizável, logo teríamos uma verdade sólida e dogmática. Afirmamos que é deste espaço vazio que depende qualquer possibilidade de liberdade subjetiva e criação. A partir disto, propomos que a liberdade de pensamento, o exercício imaginativo, logo, a produção dita utópica pode ser abordada a partir daquilo que a permite, a saber, a falta no universo de discurso ou, de outra maneira, a castração do Outro. Não seria tal abertura que permite a utopia sadiana? Continuemos.
Foi num contexto de grande agitação política que Sade idealizou uma nova organização social, propondo a corrupção dos costumes para a construção de sua República francesa baseada num modelo racional de natureza em que encontraremos a lei do gozo, conforme já destacado por Lacan. O primeiro passo para a construção de tal República consiste em destruir o teísmo cristão: "Todo princípio é um julgamento, todo julgamento é o efeito da experiência, e a experiência só se adquire pelo exercício dos sentidos; de onde se segue que os princípios religiosos, evidentemente, não se assentam sobre nada e de modo algum são inatos" (Sade, [1795] 2003: 134).
As ideias sadianas foram - e sempre serão? - consideradas proibidas, imorais, diabólicas, absurdas e etc.; porém, acima de tudo, são ideias libertinas, não apenas devassas, mas livres:
a ideia de liberdade tem um ponto vigoroso em torno do qual ela surge, e que é a função, ou, mais exatamente, a noção de >norma. A partir do momento em que essa noção entra em jogo, introduz-se correlativamente a de exceção, ou a de transgressão. É aí que a função do pensamento pode ganhar algum sentido, ao introduzir a ideia de liberdade. Resumindo, é pensar na utopia, que, como enuncia seu nome, é um lugar de parte alguma, um não lugar; é utopia que o pensamento seja livre para contemplar uma possível reforma da norma. Foi assim que as coisas se apresentaram na história do pensamento, de Platão a Thomas Morus. No tocante à norma, ao lugar real em que ela se estabelece, é apenas no campo da utopia que se pode exercer a liberdade de pensamento (Lacan, [1968-1969] 2008: 260).
O pensador, se livre, logo, utópico, é essencialmente transgressor. Eis a essência da libertinagem e da utopia sadianas. Todos os cidadãos da República sadiana seriam completamente livres para empregarem os costumes que bem entendessem, sem repressões de qualquer ordem. Não se trata, porém, da ausência de legislação, de desordem. Muito pelo contrário, seria uma sociedade na qual costumes e leis são resultados de um exercício puramente racional que busca estabelecê-los de acordo com as leis da natureza. "Todas as ideias intelectuais estão de tal forma subordinadas à física da natureza que as comparações fornecidas pela agricultura jamais nos enganarão em moral" (Sade, [1795] 2003: 165). São muitas as homologias entre o funcionamento da sonhada pátria francesa com a natureza. Por exemplo: os bebês que nascerem defeituosos, que não serão capazes de contribuir para a República mãe, serão sacrificados sem dó, pois, ora, não se podam alguns galhos de uma árvore para que o tronco se fortaleça? Defendendo a pedofilia: "quem tem o direito de comer o fruto de uma árvore certamente poderá colhê-lo verde ou maduro" (Sade, [1795] 2003: 150). Para endossar suas ideias, o autor busca exemplos de práticas idênticas em vários povos considerados desenvolvidos e sábios como a Grécia antiga.
Apesar da homologia com a natureza, na qual há certas determinações, o Estado admite que os costumes de cada cidadão são indetermináveis, devendo assim facilitar o gozo ao invés de lhe impor empecilhos: "[...] não tenhais outros freios senão os de vossas inclinações, outras leis senão os vossos desejos, outra moral que não seja a da natureza" (Sade, [1795] 2003: 153). Assim, o Marquês não parece estabelecer que o regime de verdade totalizado cristão seja substituído por outro, não há prescrição de bem ou de mal que se aplique a todos os cidadãos. Pelo contrário, cada um será livre para seguir seus impulsos, sejam eles quais forem, com as garantias da República. É um sistema absolutamente matriarcal. Assim, podemos dizer que a concepção de República sadiana está de acordo com a estrutura do Outro de Lacan, faltante, aberta à subjetividade de cada sujeito. Todavia, pode-se igualmente identificar, em Sade, um valor de verdade na causa natural: o pensamento lógico será verdadeiro se estiver de acordo com a natureza, decorrendo daí a obrigação de seguir as leis e os impulsos naturais; ou seja, é a lei imperativa do gozo.
Há, portanto, três aspectos que recortamos: (a) um regime de verdade aberto, que prega a liberdade de costumes, (b) uma lógica natural ateísta e (c) um imperativo ao gozo. Parece contraditório que cada cidadão seja livre ao mesmo tempo que deve estar de acordo com a vontade da natureza. A última, entretanto, não é delimitada por Sade, suas regras não são conhecidas. Seria mais importante deixar os impulsos da natureza reinarem do que compreendê-la. Se a estrutura do Outro, isto é, da República, é aberta e incompleta, garante a liberdade de desejos, ela também é regulada pela lei natural, superegoica e sólida. Há um trecho de Os 120 dias de Sodoma, especialmente interessante nesse sentido, que articula os três aspectos recortados:
Não há [...] nada de essencialmente bem e nada de essencialmente mal; tudo é apenas relativo a nossos costumes, a nossas opiniões e a nossos preconceitos. Estabelecido esse ponto, é extremamente possível que uma coisa, perfeitamente indiferente em si mesma, seja, entretanto, indigna a vossos olhos e muito deliciosa aos meus, e, contanto que me agrade, dada a dificuldade em lhe designar um lugar justo, contanto que me divirta, não seria eu um louco se dela me privasse apenas porque vós a censurais? (Sade, 2008: 264).
Como, então, perguntaríamos a Sade, garantir o direito de todos cidadãos se, conforme vemos em sua obra, há sujeitos que servem unicamente para serem objetos a sua total revelia? O problema da não-complementaridade entre os desejos de diferentes sujeitos é uma impossibilidade que podemos reconhecer na obra de Sade, muito embora ele não a considere. Lacan, porém, o faz ao afirmar a impossibilidade da relação sexual.
Em A filosofia na alcova, encontramos uma proposta de como conceber a lei que regule a liberdade:
É uma injustiça espantosa exigir que homens de caracteres desiguais se curvem a leis iguais; o que convém a um não serve para outro. Estou de acordo que não se pode fazer tantas leis quantos são os homens, mas as leis podem ser tão brandas, em número tão pequeno, que todos os homens, de qualquer caráter, possam facilmente sujeitar-se a elas. Eu ainda exigiria que este pequeno número de leis fosse de uma espécie passível de se adaptar facilmente a todos diferentes caracteres. O espírito de quem as dirigisse teria de aplicá-las mais ou menos em razão do indivíduo que seria preciso atingir (Sade, [1795] 2003: 140).
Por um lado não há gozo proibido, mas um imperativo de tudo gozar, no que bem podemos encontrar uma estrutura perversa que nega a castração do Outro; por outro, a sociedade utópica produzida pelo livre exercício de pensamento e relativizada o suficiente para garantir a liberdade dos cidadãos reafirma a castração do Outro. Eis o impasse em que reconhecemos o mecanismo do desmentido (Verleugnung) freudiano.
Lembramos um trecho particularmente interessante de "O mal-estar na civilização", no qual Freud, ao comentar o sentimento universal de culpa, afirma o seguinte: "Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano [...]" (Freud, [1930] 1976: 135). Na sequência, Freud parece atribuir diretamente a existência do sentimento de culpa expressado no conflito edípico à estrutura da família. Então, se não nos organizássemos em famílias, o inconsciente ainda se estruturaria a partir do conflito edípico? Articulemos Sade com o curioso trecho de Freud ("Enquanto a comunidade não assume forma que não seja a da família"). Sade alerta sobre os perigos de se deixar crianças restritas a uma família, pois todas elas nascem filhas da pátria. "Não imagineis fazer bons republicanos isolando em suas famílias crianças que só devem pertencer à República" (Sade, [1795] 2003: 152). Sade ainda afirma que o "incesto deveria ser a lei de todo governo baseado na fraternidade". Um homem poderia preferir gozar dos objetos que a disposição natural fez com que lhe fossem mais próximos, isto é, os parentes. Se o complexo de Édipo é algum tipo de norma, é justamente para além dele que a liberdade de pensamento de Sade se expressa como uma utopia? É por buscar o horizonte mais inacessível de gozo, a saber, aquilo que se reduz ao objeto a, que encontramos em Sade um pensamento impossível, transgressor e utópico.
CONCLUSÃO
A análise da topologia da pulsão sadomasoquista mostra que o reviramento pulsional tem a estrutura de uma fita de Moebius. Isto é, uma superfície unilátera na qual o direito e o avesso encontram-se em continuidade. Mas essa unilateralidade se revela através de um corte. Sabemos que uma fita tem apenas um lado, mas quando realizamos um corte, longitudinalmente, seguindo pelo eixo media-no, surgem dois lados. Ou seja, quando percorremos com a tesoura toda a superfície podemos confirmar ou não que se tratava de uma superfície unilátera.
E a pulsão, quando se sabe que ela atingiu seu fecho? Quando ocorreu a sua satisfação. Ora, quem goza? Não é o sujeito, representado ou pela dimensão sádica ou pela dimensão masoquista. No laço social, esse gozo aparece no discurso. Pode ser o discurso da utopia em Sade. E, no romance de Masoch, quem goza com o suspense no qual fica o leitor até o final?
Quanto aos outros dois destinos da pulsão, o recalque e a sublimação, não poderíamos, também, subsumi-los sob a égide do reviramento ou vaivém? No próprio artigo de 1919 [1976], sobre a fantasia masoquista, Freud indica que os destinos da fantasia masoquista poderiam ser o recalque e a sublimação.
REFERÊNCIAS
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